quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A natureza contra-ataca

A notícia de que grupos de orcas estariam atacando iates e veleiros ao largo das costas de Portugal e de Espanha, aparentemente de forma coordenada, trouxe-me à memória o best-seller do escritor alemão Frank Schatzing, “O cardume”, publicado no Brasil pela Record, em 2006. O volumoso romance de Schatzing começa com um ataque de orcas e baleias contra navios de recreio. A seguir, tudo se complica, até se tornar evidente que alguma inteligência capaz de controlar os seres que habitam os oceanos decidiu declarar guerra contra a humanidade. “É a vingança da natureza!” — proclama durante o ataque das baleias um militante ecologista. 



Estou terminando de ler um outro romance premonitório: “Fever” (Febre), do romancista sul-africano Deon Meyer, publicado em 2016 e que, tanto quanto sei, não foi ainda traduzido para a nossa língua. No romance de Meyer, 95 por cento da humanidade morre infetada por uma nova estirpe de coronavírus. O enredo é narrado por um dos sobreviventes, um rapaz chamado Nico Storm, que segue o pai, Willem, através de um país em ruínas, em busca de um novo começo para a humanidade. 

Ambos os livros privilegiam a ação, e podem ser lidos como simples romances de aventura (o tipo de livros ótimo para ler no avião, durante viagens longas — quando ainda voávamos de avião). Ao mesmo tempo, ambos se esforçam por assegurar alguma ligação à realidade, o que fica explícito nas páginas de agradecimentos, com Schatzing e Meyer mencionando uma mão cheia de cientistas que os terão ajudado a preparar os respetivos livros. 

Meyer, aliás, tem confessado em entrevistas recentes que não foi ele a prever a atual pandemia de coronavírus — terão sido os cientistas sul-africanos com quem conversou que lhe deram essa ideia. 

Já no caso das orcas, erradamente chamadas de baleias assassinas, pois não são baleias, e sim parentes dos golfinhos, Schatzing pode ficar com todo o mérito pela previsão. Os ataques estão surpreendendo até os cientistas. Na história da marinharia são raríssimos os relatos de ataques a navios por baleias ou orcas, muito menos em grupo e de forma coordenada. Uma das vítimas dos ataques recentes, Victória Morris, declarou que as orcas comunicavam umas com as outras, aos assobios, enquanto atacavam a embarcação. Finalmente, conseguiram quebrar o leme, deixando o barco à deriva. Esperemos que a realidade não insista em imitar a ficção, pois o livro de Schatzing, embora menos catastrofista do que o de Meyer, é infinitamente mais bizarro. 

Após a pandemia de Covid-19, temos de enfrentar agora a ira (justíssima) das baleias. A realidade parece estar lendo muito e somando distopias. Não sei qual será o próximo romance a prever o futuro. Receio que o Brasil esteja a caminho do “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury. “1984”, de Orwell, também já pareceu mais distante. Ou será talvez “O planeta dos macacos”, de Pierre Boulle, publicado em 1963, e que deu depois origem a uma infinidade de adaptações cinematográficas. 

Em qualquer caso, parece certo que para conhecer o futuro é melhor consultar os escritores do que os astrólogos. 

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