A construção do texto final se assemelhou aos procedimentos diplomáticos para assinatura de acordos internacionais. Primeiro foram realizadas mesas de conversa por três dias. As grandes pautas abordadas foram os assassinatos de lideranças; os empreendimentos governamentais previstos para serem construídos sobre as Terras Indígenas; a atividade garimpeira e do mercado de mineração; a ação de madeireiros ilegais; a municipalização do sistema de saúde indígena, que ignora o tratamento especial dado atualmente a essas comunidades; e o desmonte da Funai.
O relatório original de trinta páginas foi então finalmente convertido por jovens indígenas formados em Direito em um documento enxuto, apresentado em português, por meio do qual eles denunciavam o “projeto político do Governo brasileiro de genocídio, etnocídio e ecocídio”. “As ameaças e as falas de ódio do atual governo estão promovendo a violência contra os povos indígenas, os assassinatos de nossas lideranças e a invasão de nossas terras", afirma o relatório. “O atual presidente da República está ameaçando os nossos direitos, a nossa saúde e o nosso território. (...) O governo atual está nos atacando, querendo tirar a terra de nossas mãos.”
Sob a cobertura de palha da Casa dos Homens, espaço que usado como plenária ao longo do encontro, Raoni estava cercado de outros caciques Kayapó enquanto os jovens liam a primeira proposta do texto. Os anciões pediram que os 47 povos pudessem se organizar em delegações ―pequenos grupos que se reuniram em rodas pela aldeia―, formados pelos anciões de cada povo e um jovem que pudesse traduzir o documento do português para a língua nativa de cada um. Após cada delegação ouvir a tradução em seu idioma, as lideranças fizeram uma lista de propostas de emenda ao documento.
Com as mudanças solicitadas em mãos, todos os líderes se reuniram mais uma vez na Casa dos Homens e as propostas foram votadas uma a uma. Entre elas, que fosse incluída a frase: “Não admitimos que o Brasil seja colocado à venda para outros países que têm interesse de explorar o nosso território”. Também houve muito debate sobre o título, que foi definido por consenso de forma a deixar claro que as afirmativas ali partiam de inúmeros líderes indígenas, que reconhecem Raoni como a liderança de todos. “Só nós podemos falar sobre nós e por nós mesmos. Não admitimos que nossos caciques sejam desrespeitados, assim como Bolsonaro fez em 2019 em seu discurso durante o encontro na ONU contra o cacique Raoni. Afirmamos que o Cacique Raoni é SIM [em letras maiúculas] a nossa liderança. Ele nos representa!", continua o texto.
Os líderes indígenas também decidiram em unanimidade dar destaque para a defesa dos territórios, o combate à atividade minerária, de garimpo e de madeireiras e ao arrendamento de terras. “Nós não aceitaremos garimpo, mineração, agronegócio e arrendamento em nossas terras, não aceitamos madeireiros, pescadores ilegais, hidrelétricas ou outros empreendimentos, como Ferrogrão, que venham nos impactar de forma direta e irreversível”, afirmou o documento. Por fim, as nações indígenas reiteraram esperar que as palavras redigidas em papel ecoem pelas ruas, por meio de manifestações no Brasil e no exterior. “2020 será um ano de muita luta, (...) de muitas mobilizações (...) em Brasília e nas ruas do mundo todo”, diz o documento.
E assim, após nove horas de negociação entre os povos, o texto final foi assinado pelas principais lideranças. Três mulheres kayapó (Maialu, Mayal e Moé) fizeram a relatoria do documento. Maialu, filha do cacique Megaron Metuktire, braço direito de Raoni, foi quem encerrou a mesa. Uma dança marcou a conclusão da elaboração do manifesto e a retomada da aliança dos povos da floresta. O momento retratou a união entre povos fisicamente distantes, do Rio Grande do Sul ao Pará, e de reconciliação oficial entre nações que já tiveram desavenças, agora deixadas para trás.
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