sábado, 5 de outubro de 2019

Como ousa?

A fuga da realidade no discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU causou apreensão. Como o chefe de Estado brasileiro é capaz de produzir, perante representantes de 192 países, um pot-pourri cujos assuntos desconexos têm um elemento comum: a fantasia?

Por sua fala, vive-se uma cruzada em defesa dos cristãos contra os invasores de almas para sequestrar Deus e destruir a família, carregados de ideologias. Além da convocação para a guerra santa, o presidente disse sobre a Amazônia: “Ela não está? sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora”.

Não pretendo alistar-me no exército de Bolsoleone na luta contra os imaginários destruidores dos valores ocidentais cristãos, mas aceito o desafio de saber o que acontece na Amazônia. Os relatos de órgãos oficiais e de ONGs, há décadas monitorando a região, preocupam.


Já em 1981 o geógrafo Antonio Giacomini Ribeiro (Acta Amaz. vol.11 n.º 2 Manaus) observava que o envio de umidade para a atmosfera decorria principalmente da evapotranspiração, antes da chuva, por intensa atividade de fotossíntese e na chuva antes de a água atingir o solo. E alertava o geógrafo que a criação das nuvens tipo “u cumulus esfarrapadus”, propícias para chuvas, ocorre na floresta densa e nem sequer se dá em áreas de campo e desmatamentos.

Esse fato é importante, pois se constatou, ao longo do tempo, que a Amazônia produz metade de suas próprias chuvas, formando um ciclo hidrológico fechado, cabendo a pergunta de Elton Alisson, da Fapesp: qual seria o nível de desmatamento a partir do qual o ciclo hidrológico amazônico se degradaria?

Respondem a essa pergunta os renomados professores Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, na revista Science Advance e no site de notícias Virtù. Explicam que a Floresta Amazônica depende do ciclo hidrológico que ela mesma produz, havendo dessarte um nível de desmatamento além do qual esse ciclo perde força a ponto de não mais produzir a chuva necessária para a vida dos ecossistemas da floresta tropical.

Lovejoy, então, esclarece que ele e Carlos Nobre, diante de circunstâncias naturais e de intervenção humana, reavaliaram para baixo a porcentagem de desmatamento a partir da qual o ecossistema amazônico passaria do ponto de não retorno, sendo o tipping point entre 20% e 25%. E o pior: “O ponto de não retorno está sendo atingido. Esta situação uma vez instalada não pode mais ser revertida. Uma vez quebrado o ciclo hidrológico, o ecossistema amazônico entra em colapso e não mais pode ser recuperado por medidas de preservação”, havendo o perigo iminente de a Amazônia vir a ter apenas vegetação típica do cerrado e, por ricochete, causando seca no Sudeste.

Com a participação de cientistas brasileiros e estrangeiros, coordenado pelo climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), do Ministério da Ciência e Tecnologia, pesquisa sobre o clima na Amazônia e o que pode acontecer pelo desmatamento em grande escala (Frontiers in Earth Science, com o título Changes in Climate and Land Use Over the Amazon Region) concluiu: “Os efeitos combinados da seca e do desmatamento, juntamente com o fogo, podem ampliar os impactos e causar o colapso do ecossistema da floresta tropical” (www.cemaden.gov.br/impactos-na-amazonia).

Entre 1o de janeiro e 29 de agosto de 2019 o Inpe detectou 45.256 focos de calor no bioma Amazônia, o maior já registrado desde 2010. Esse aumento expressivo de focos, comparado a anos anteriores, se verificou em praticamente todas as categorias fundiárias; e apesar da proteção ambiental as unidades de conservação em 2019 mostraram aumento surpreendente, com o dobro dos focos registrados em relação à média dos últimos oito anos, com concentração em determinadas unidades, como a Floresta Nacional do Jamanxim.

Conforme noticia a WWF Brasil, na Amazônia 31% dos focos de queimadas registrados até agosto deste ano localizavam-se em áreas que eram floresta até julho de 2018, conclusão essa fruto da análise feita sobre focos de queimadas no bioma, com base em séries históricas de imagens de satélite e em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Outro dado trazido pela WWF Brasil é significativo: a área com alertas de desmatamento em agosto foi de 1.394 km2, um valor 120% maior que o do mesmo mês em 2018. Somente nos oito primeiros meses de 2019 a área total com alertas de desmatamento foi de 6 mil km2, 62% mais do que o observado no mesmo período em 2018.

Conforme matéria do site G1, Ane Alencar, uma das maiores especialistas em incêndios na Floresta Amazônia, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, diz: as queimadas aumentaram por causa do desmatamento, “é uma relação direta”, pois, quando se desmata uma área para pastagem ou agricultura, cabe se livrar daquela biomassa. Essa ligação entre desmatamento e queimada é acentuada em outra entrevista, disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/o-governo-nao-pode-espalhar-o-fogo-na-amazonia/.

Em setembro, com atuação do Exército, reduziu-se um pouco a queimada, mas o desmate, ação ilegal que antecede o fogo, persiste elevado.

Estes dados impõem recorrer à expressão de Greta Thunberg: como ousa, presidente?

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