Fukuyama contou que não teria escrito Identidade se não fosse Donald Trump. Veio dali a maioria de seus insights no livro. As pesquisas para entender as razões do voto dos americanos em Trump mostram que muitos dos que optaram pelo cabelo alaranjado do bilionário recordavam tempos em que viam seus lugares na sociedade mais seguros. A expectativa era que, por meio de suas ações, Trump fosse capaz de “make America great again”.
Embora distantes no tempo e no espaço, os sentimentos que os eleitores rurais dos Estados Unidos nutrem pelas elites das costas Leste e Oeste americanas e seus “amigos na grande mídia”, e de como se veem excluídos por eles, em muito se assemelham à forma como os apoiadores de Putin veem a arrogância e o desdém das elites ocidentais para com a Rússia. Putin explora essa demanda por dignidade que parte dos russos sente ao falar de como a Europa e os Estados Unidos se aproveitaram da fraqueza da Rússia durante os anos 1990 para levar a Otan até suas fronteiras. Ele também detesta a atitude de superioridade moral dos políticos ocidentais e, como disse certa vez numa conversa com Barack Obama, não quer ver a Rússia ser tratada como um ator regional fraco, mas como uma potência mundial.
Na Hungria, Viktor Orbán declarou em 2017 que seu regresso ao poder marcava o ponto em que os húngaros haviam “decidido recuperar o país”, “recuperar a estima” neles próprios e o que chamou de “nosso futuro”, expresso em uma crítica à União Europeia e à imigração. Seu partido, o Fidesz, entende que a identidade nacional húngara se baseia na etnicidade húngara, em risco diante da integração do continente e da mistura com outros povos.
Fukuyama também vê no surgimento de Osama Bin Laden um exemplo da política do ressentimento e lembra os relatos da mãe do terrorista, que descrevera uma cena em que Bin Laden, com 14 anos, aos prantos, assistia na TV à Palestina humilhada. Mais tarde, a cólera pela humilhação dos muçulmanos galvanizou o engajamento de centenas de jovens que se voluntariaram para lutar ao lado da Síria em nome de uma religião que eles acreditavam ser atacada e oprimida ao redor do mundo. A recriação do Estado Islâmico traria de volta a glória de uma civilização islâmica do passado, com sua dignidade restabelecida.
No livro, Fukuyama vê muitos integrantes da classe média global como os ressentidos, que “apontam um dedo acusador para cima, às elites, para as quais são invisíveis, mas também para baixo, para os pobres, que eles acham que não são merecedores e estão sendo indevidamente favorecidos”.
No Brasil, do qual o cientista político não trata em seu livro, o ressentimento contra a inclusão de pobres fica evidente em muitos dos discursos críticos ao Bolsa Família e ao acesso inédito a alguns bens de consumo garantido pelos anos do PSDB e do PT no poder. Houve, sim, quem se incomodasse em ver universidades antes exclusivas serem compartilhadas por bolsistas do ProUni e outros tantos que não gostaram de dividir voos com pessoas que só viajavam de ônibus.
O ressentimento contra os crescentes direitos de minorias, como os homossexuais, está expresso em propostas que tramitam no Congresso, a exemplo da criação do Dia do Orgulho Hétero, e em falas como a do presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, que em dezembro de 2017 disse que “heterossexual agora está virando minoria”, que “não tem mais direito nenhum”.
Tudo isso constitui uma parte considerável da massa que votou em Bolsonaro. É claro que não se pode ignorar que muitos votaram acreditando na promessa de um país menos corrupto ou pelo simples desejo de querer algo diferente do PT. Mas, entre os muitos que queriam algo diferente do PT, existiam os que queriam retornar às glórias de um passado que, ao menos na cabeça deles, existiu. Algumas manifestações de bolsonaristas em redes sociais deixam explícita essa visão. “Hoje o povo brasileiro dá um novo grito de independência. O Brasil se liberta da servidão a um partido, a uma ideologia e a um sistema que nada fizeram senão sugar as energias da nação e perverter a sociedade”, escreveu o assessor internacional de Bolsonaro, Filipe Martins, no dia da vitória do presidente no segundo turno.
O discurso de Bolsonaro na ONU também foi na mesma linha, ao falar de como estavam em risco, antes de sua eleição, os “valores familiares e religiosos”. Falou ainda na perseguição a cristãos e sobre como haveria, também antes de sua chegada ao poder, uma “ideologia perversa” infiltrada na cultura, na educação e na mídia, indo “contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família”, “pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica”.
O livro de Fukuyama aponta ainda outro alvo dos ressentidos: o politicamente correto — que Bolsonaro também atacou em seu discurso na ONU. E lembra como, nascido a partir da reivindicação de políticas identitárias de esquerda, o politicamente correto, ou melhor, sua negação, tornou-se uma pauta identitária da direita. Ser politicamente incorreto passou a ser uma marca do que é ser de direita. “Trump foi um praticante perfeito da ética de autenticidade que define nossa era: pode ser mendaz, malévolo, preconceituoso ou pouco presidencial, mas pelo menos diz o que pensa”, escreveu, numa frase em que o sujeito poderia ser perfeitamente, em vez de Trump, um certo brasileiro.
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