A analogia do romance de Zweig com a situação no Brasil pode parecer um pouco forçada, pelo contexto, pelas diferenças entre situações individuais e situações coletivas, pelas consequências. Mas a semelhança, parece-me, não é tão absurda tendo em vista que, em ambos os casos, instaura-se o caos. No caso do romance de Zweig, trata-se de caos na vida e na alma de três pessoas, levando-as a extremo sofrimento. No caso do Brasil, o caos político, judiciário e econômico leva igualmente a extremo sofrimento, só que não mais para um único indivíduo, mas para toda uma sociedade.
A extrema “confusão” ora prevalecente no Brasil não deixa de vir também dos sentimentos. É, entre outros, fruto do total desrespeito ao princípio fundamental em que se apoiam as democracias, ou seja, o da separação dos três poderes. Por mais simbólica que seja a praça de Brasília que leva esse nome, rodeada que é pelo Palácio do Planalto, sede do Executivo, pelo Congresso, onde se deveria legislar, e pelo templo da justiça, o Supremo Tribunal Federal, é apenas um símbolo. Em nosso país, vivemos uma situação na qual o Judiciário legisla, o Executivo julga e o Legislativo executa. E onde, da mesma forma, o Executivo entra em choque com o Legislativo, que por sua vez, se acha competente para desfazer sentenças judiciais.
Há vários exemplos recentes dessa confusão. O que mais chamou a atenção talvez tenha sido o decreto de indulto que saiu do Palácio de Planalto às vésperas do Natal. Menos daninho porque menos abrangente, mas igualmente escandaloso, foi a interferência do legislativo carioca na ordem de prisão do seu presidente e de dois de seus comparsas. Há ainda o caso, desta vez dentro do mesmo poder mas em instâncias diferentes, do ministro do Supremo que manda soltar um amigo seu condenado em 1ª instância. Esses exemplos não esgotam os casos ocorridos. São apenas os que mais chamaram a atenção por sua ousadia e pelo descaso com a opinião pública.
Recorro ao pensador francês Charles de Montesquieu, cuja obra De l’Esprit des Lois (O Espírito das Leis) permanece, passados mais de 250 anos, o grande clássico sobre a separação dos poderes. O fundamento de sua ideia relativa aos três poderes, é o de que a separação é indispensável porque, se o legislador se confunde com o executor, está aberta a porta aos nepotismos, favoritismos e à corrupção, já que existe sério risco de que o legislador formule e aplique leis que lhe sejam mais favoráveis. Se o executivo se confunde com o juiz, como controlar as decisões que dele emanam?
Acredito que se Montesquieu pudesse ver o que está-se passando no Brasil do século XXI, felicitar-se-ia pela sua clarividência. Nossa situação é a prova contrario sensu da absoluta necessidade de se respeitar a separação e a independência dos três poderes. Nos Estados Unidos, exemplo de democracia por excelência, ora testada inclusive pelo atual governo que quer livrar-se dos constrangimentos da Constituição, observa-se rigorosamente o princípio da separação dos poderes, mas existe, para evitar os abusos de poder de cada setor, o mecanismo dos checks and balances, através do qual os poderes podem controlar-se uns aos outros, dentro de suas competências. É assim que o Judiciário pode e deve controlar a constitucionalidade das leis e das ações do Executivo, que o Executivo pode vetar leis (sendo que o Congresso pode cancelar o veto por uma maioria de dois terços) e que o Congresso é competente para decidir sobre o impeachment do Executivo e sobre a alocação de recursos proposta por ele. Longe de entrar em contradição com o princípio de Montesquieu, esses checks and balances asseguram a fiel observância do papel de cada um, sob pena de advertências e sanções.
Atualmente no Brasil, a separação dos poderes se dilui na prática: o controle de um sobre as ações de outro é relativo. Há vários casos, como o da nomeação de uma ministra do Trabalho condenada em ações trabalhistas e de um diretor do Detran que perdeu a carteira por repetidas infrações às leis do tráfego. Justificativas absurdas como, por um lado, que é constitucional que o presidente nomeie quem quiser, ou, por outro, dizer que um diretor de Detran não precisa ter carteira de motorista válida, demonstram a absoluta falta de decoro e de compostura dos nossos governantes.
Nos EUA, há uma prática denominada vetting, que bem poderia ser implantada no Brasil. Antes de anunciar nomes para altos cargos do Governo, o indivíduo é investigado para que se comprove que não está envolvido em situações duvidosas. Uma espécie de “atestado de bons antecedentes”. Só depois de receber uma avaliação positiva é que o presidente ou o ministro procede à nomeação. Esse mecanismo evita os constrangimentos que estamos testemunhando agora.
Infelizmente, enquanto imperarem no Brasil, como motores da vida política, os interesses particulares, a ganância, a corrupção; enquanto não se instaurar uma austeridade absolutamente necessária para evitar que realizações inúteis e mirabolantes, mas que oferecem oportunidades políticas e de enriquecimento ilícito, se sobreponham a projetos destinados a melhorar as condições de vida no país, como são os ligados a educação e saúde, enquanto, enfim, confundam-se meios e fins, e as ações de cada poder sejam guiadas exclusivamente pelos interesses de seus integrantes e não pelo interesse público, não há como mostrar-se otimista quanto a nosso futuro institucional.
Stefan Zweig é muito conhecido no Brasil pela autoria de um livro, ao que tudo indica subsidiado pela administração Vargas, denominado Brasil, País do Futuro. A julgar pelo andar da carruagem, sempre será.
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