Quanto a mim, embora não acredite que o mundo vá acabar a 23 de setembro, destruído por um asteroide, confesso que me sinto um pouco inquieto. Até recentemente, o fim do mundo não dependia de nós, seres humanos. Apenas um terrível desastre cósmico poderia extinguir a vida na Terra. Entretanto, progredimos muito na técnica da matança e da destruição em larga escala. No tempo em que os homens se matavam à espadeirada era até compreensível a expressão “arte da guerra”. Um duelo à espada tinha algo de bailado. Os homens matavam-se olhando-se nos olhos. Com o progresso tecnológico passamos a matar à distância, cada vez mais à distância, no limite, através de drones ou de mísseis telecomandados. Matam-se populações inteiras como quem extermina baratas. Na guerra, todo o progresso é barbárie.
Hoje temos a capacidade de destruir o planeta. Tenho mais medo dos homens do que dos astros. Confio mais em qualquer asteroide do que em Donald Trump ou Kim Jong-Un.
Em 1947, um grupo de cientistas criou um relógio simbólico, o Relógio do Apocalipse, que tenta alertar para a probabilidade de ocorrência de um cataclismo nuclear. Quando foi criado faltavam sete minutos para a meia-noite — sendo a meia-noite o grande desastre. Depois disso o relógio tem sido atrasado e adiantado, consoante sopram os ventos da estupidez ou do bom senso. Em 1953, ano em que tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética realizaram ensaios nucleares, esteve a dois minutos da meia-noite. Nos anos seguintes, afastou-se. Em 1991, depois que a União Soviética e os Estados Unidos assinaram o Tratado para a Redução de Armamentos Estratégicos, o ponteiro recuou até os 17 minutos. Desde então não tem feito outra coisa senão aproximar-se da meia-noite. Está agora, outra vez, muito perto dos dois minutos.
A minha filha Vera, de 13 anos, perguntou-me, após escutar as notícias sobre a explosão experimental de uma bomba de hidrogênio, na Coreia do Norte, o que podemos fazer para evitar uma guerra nuclear. A pergunta apanhou-me de surpresa:
“O que podemos fazer? Quem, nós, ou os políticos?”.
“Nós, as pessoas comuns. Não podemos culpar os políticos se nós ficarmos quietos. Tu, por exemplo, achas que fazes o suficiente?”
Fiquei a pensar naquilo. Hoje em dia já há quem se dedique a conceber estratégias e artefatos para impedir que a Terra possa, um dia, vir a ser destruída por um asteroide. Nada contra. No imediato, contudo, faria muito mais sentido se tentássemos responder à questão da minha filha: “O que estamos fazendo para impedir um conflito nuclear? O que podemos fazer?”.
Ganhar consciência de que é urgente fazer alguma coisa já me parece um bom começo.
Revi, há poucos dias, “Wild river” (“Rio violento”), filme que o diretor grego-americano Elia Kazan rodou em 1960. O filme conta a história de um funcionário de uma agência governamental norte-americana, interpretado por Montgomery Clift, enviado para uma pequena localidade, na margem do rio Tennessee, em vias de ser submersa devido à construção de uma barragem. A missão do funcionário é a de convencer uma velha senhora a abandonar a sua casa, numa ilha, levando consigo os trabalhadores rurais. A senhora recusa-se a sair e um dos trabalhadores permanece ao seu lado. Quase no fim do filme, enquanto as águas do rio sobem, o personagem representado por Montgomery Clift vê o camponês a arar a terra como se nada estivesse acontecendo.
Receio que, no momento atual, aquele camponês sejamos nós: os ponteiros do relógio avançam, e prosseguimos, indiferentes, a rotina de todos os dias. Infelizmente, como lembra um provérbio angolano: a cegueira não salva o cego do ataque do leão.
Sempre que escuto o argumento da dissuasão nuclear — “temos de ter armas nucleares para evitar que o inimigo use armas nucleares” —, sinto que estão insultando a nossa inteligência. Tentar prevenir uma guerra produzindo armamento cada vez mais letal é como pretender prevenir incêndios distribuindo lança-chamas pelos pirômanos. Se as armas existem, então um dia alguém as utilizará.
O mundo não terminará a 23 de setembro. Mas enquanto não conseguirmos desmantelar todo o armamento nuclear estará sempre à beira do fim.
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