quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Inveja

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O hotel ficava a poucos quarteirões. Perguntei como fazia para voltar, e alguém me disse para sair e seguir direto: uma caminhada de dez minutos, se tanto. Meia hora depois, comecei a desconfiar que havia tomado a direção errada — mas gosto de me perder, e continuei andando. Estava numa região simpática, de prédios pequenos e relativamente pouco movimento. Havia jardins escondidos por trás de muros, árvores com florzinhas amareladas muito pequenas que caíam sobre o asfalto e sobre os carros estacionados, e que, em alguns trechos, lembravam neve.

Uma hora depois, cheguei a um condomínio maior, formado por edifícios altos, onde havia um recuo com uma fonte e uma placa que dizia que aquela era uma área pública. Havia um bonito jardim, e umas 20 cadeiras de alumínio espalhadas: um grupo de cinco, dispostas em círculo, revelava que ali se haviam reunido há pouco algumas pessoas. Um casal estava deitado na grama, conversando e aproveitando o sol. Fora eles, não havia ninguém. Sentei numa das cadeiras, tirei o celular da bolsa e passei alguns minutos conferindo as minhas mensagens e descansando da caminhada. Depois fiz meia volta, refiz o percurso, andei o que tinha andado e mais um pouquinho e cheguei ao meu destino.

Poucas lojas: um mercadinho, um florista, uma tinturaria. Não vi nem banco nem farmácia — que, aliás, estava procurando.

Pelo caminho cruzei com moradores que passeavam cachorros com calma, e parei para fazer carinho em dois ou três deles. Os moradores tinham mais ou menos a minha idade: às quatro horas da tarde, em todas as partes do mundo, as pessoas mais jovens estão no trabalho ou na escola. Vi gente de iPhone na mão, usando headphones mais ou menos descolados. Vi um rapaz espichado numa escadaria com um livro aberto e, um pouco adiante, um senhor sentado num banco, lendo o jornal.

Ao longo da vida, em algumas ocasiões e por razões distintas, senti uma vaga inveja de quem mora em Nova York: ora por causa do comércio fenomenal, ora por causa da vida cultural sem igual no planeta. Isso em geral me aconteceu depois de assistir a espetáculos deslumbrantes, ou ao entrar em lojas que parecem museus de novidades. Dessa vez, o meu sentimento era mais profundo, e tinha um motivo mais simples. Eu invejava aquelas pessoas que podiam andar despreocupadas, e que podiam se dar ao luxo de ficar sentadas em bancos públicos sem fazer nada.

Invejei: muito.

Eu invejei aqueles bancos. Eu invejei aquelas calçadas onde a gente pode andar sem tropeçar no calçamento, eu invejei aquelas cadeiras de alumínio de boa qualidade que ninguém havia roubado ou quebrado só por quebrar.

Eu invejei os equipamentos públicos em bom estado, eu invejei as paredes sem pichações.

Eu invejei a calma, a aparente ausência de policiamento, a rotina do sossego.

Ter inveja é uma desgraça, e me senti muito mal no meio de toda aquela tranquilidade que, no tempo da minha vida, provavelmente não vou viver de novo no Rio de Janeiro.

Tentei pôr os meus sentimentos em ordem enquanto caminhava. Sempre fui especialista em ver o lado positivo das coisas, sempre fui capaz de inventar mil razões para justificar a minha cidade e o meu país e, até pouco tempo, sempre fui capaz de me convencer de que nunca conseguiria viver em outro lugar a não ser aqui; mas não tenho mais certezas.

Minha pátria é minha língua, e minha pátria é a cidade onde nasci. Conheço os códigos, sei o que significam cada bairro e cada jeito de falar, coisas que não percebo em nenhum outro lugar do universo. Essa sensação de pertencimento e de familiaridade não tem equivalente, e é por causa dela que aguentamos os desaforos de uma cidade de onde a razão e o bom senso nos mandam fugir. É por causa dela que as pessoas teimam em morar em zonas de guerra, e morrem bestamente de bala perdida ou faca encontrada.

A cada dia vejo mais gente que decidiu fazer as malas e ir embora de vez, e agora, ao contrário de antes, não tenho mais argumentos para tentar demover ninguém. Uma coisa é viver perigosamente, outra é ter a responsabilidade de convencer os demais a fazerem o mesmo.

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A falta de governo e a falta generalizada de cidadania nos condenam a um cotidiano agressivo e deprimente. Ninguém consegue viver bem numa cidade onde nada funciona, num lugar onde não há um centímetro de parede sem pichações ou equipamento urbano que não tenha sido vandalizado. Por outro lado, como amar e cuidar de um lugar que não oferece possibilidades? Se eu tivesse 20 anos e zero futuro também estaria pichando paredes e quebrando pontos de ônibus.

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Enfim.

Desculpem qualquer coisa.

Eu gostaria de ter escrito uma crônica leve e para cima, uma coluna alegre que trouxesse um sorriso embutido, mas quando comecei, dessa vez, não houve uma só linha divertida que eu começasse que não me parecesse artificial e fora de lugar.

Apesar do muito que gosto de Nova York, não faço questão de viver numa cidade monumental, no umbigo do mundo. Eu só quero voltar a andar na rua despreocupada, ou pegar um ônibus sem saber para onde ele vai para descobrir lugares novos, como fazia antigamente.

Eu só quero sentar num banco na praça e deixar o tempo passar.

Cora Rónai 

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