A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais
Fernando Pessoa (1888-1935), em Livro do desassossego
Lá se vão quase cem anos desde que Fernando Pessoa escreveu os fragmentos que seriam publicados, somente depois de sua morte, no Livro do desassossego, mas parece que foi ontem. Quando lemos a passagem acima, temos a sensação de que ele fala dos nossos dias – e do Brasil. Hoje, como naqueles tempos, os jornais não primam pela beleza. Aliás, também não primam pela limpeza: ao manusear as versões impressas dos nossos matutinos, o leitor fica com os dedos tingidos de tinta escura. Veja você, que metáfora incômoda: a leitura dos jornais suja as mãos do público.
Como no universo poético da prosa de Fernando Pessoa, os diários não nos contam novidades inspiradoras. Bem ao contrário, nas suas páginas que se esparramam como toalhas quebradiças sobre a mesa do café da manhã, predominam relatos que desalentam, que desnorteiam, que desassossegam. Seja pela pauta, seja pela forma do discurso, seja pelos padrões éticos ali implicados, o que sai dali nem sempre é sangue, mas invariavelmente dói. Diariamente, a imprensa entrega à sociedade um inventário de perfídias que desafiam não apenas o senso de justiça, mas a própria capacidade que a razão tem de classificar os comportamentos humanos. Pessoa tinha razão: a leitura dos jornais é sempre penosa do ponto de vista moral.
Portanto, ao nos queixarmos de que as notícias não têm sido exatamente edificantes sobre o Brasil, lembremos que não é de hoje que as notícias dos jornais causam desassossegos às sensibilidades menos cascudas. As coisas não vão bem na nossa República Federativa, mas esta não é a primeira vez na história da humanidade que a imprensa vem nos soterrar com episódios degradantes, relatados em estilo vil, sobre personagens repugnantes, desfiguradas por vagas de ganância inominável. Agora, quando as manchetes parecem anunciar o fim do mundo moral, tenhamos em mente que o fim ainda não chegou de verdade. A trama da realidade ainda pode piorar. Vai piorar.
E como reagir a tudo isso? Talvez com o desânimo. Ainda sobre a leitura dos jornais, Fernando Pessoa dizia que as guerras e as revoluções causavam “não horror, mas tédio”. Eis aí outro paralelo como os nossos dias. A “brava” gente brasileira, que já teve seus dias de brabeza furiosa, de indignação cívica e de nojo, atualmente guarda pouco além de tédio no espírito. Alguns tentam resistir e lançam mão da teimosia. Alguns chegaram a ponto de tentar organizar um ato de repúdio contra a corrupção na Avenida Paulista no final de semana. Quanto voluntarismo. Eu vi fotografias – nos jornais, evidentemente. Lá estavam uma ou duas dúzias de manifestantes envergando camisetas brancas. Fiquei tentando reconhecer as fisionomias, que não me eram estranhas. Mas eram poucas. Pouquíssimas. Tive a impressão de que um sinal fechado numa faixa de pedestres na esquina de Rebouças com a Faria Lima junta mais gente.
Uns poucos ainda alegam que, se houver “pressão popular” nas ruas, o governo de Michel Temer não resistirá. Acontece que a tal “pressão popular” jogou a toalha. Tirando o pessoal do ato da Paulista e aquele outro pessoal que põe fogo em pneus para bloquear as rodovias, só o que se vê é a indiferença generalizada. O Brasil desce aos infernos num itinerário macabro, seguido de perto pelos jornais e simplesmente ignorado pelo povo. O Brasil derrete sem protestos, sem passeatas, sem manifestações públicas. O Brasil sucumbe num suspiro de mau hálito. Quanto às multidões, bem, elas faltaram ao encontro.
Em lugar da bandeira das “Diretas Já”, as preguiçosas massas omissas optaram por se conformar à praticidade das “diretas já-já” (em 2018 mesmo, não faz mal). Derrubar Temer não interessa a mais ninguém. Muitos dos que o xingavam de golpista preferem agora deixá-lo onde está. Apostam que o desgaste de sua ínfima popularidade (em índices quase negativos) abastecerá de cólera os palanques da oposição no ano que vem. É o paradoxo dos paradoxos: como presidente, quem diria, Michel Temer virou um ótimo cabo eleitoral dos que o detestam.
Enquanto não cai o governo Temer, vão caindo os tapumes da hipocrisia nacional. O Brasil ainda não mostrou a cara, como queria Cazuza, mas já se desescondeu um pouco mais, descortinando comprometimentos que antes ficavam ocultos. Problemas que até outro dia eram percebidos como flagelos isolados uns dos outros, como focos localizados, revelam-se conectados entre si, numa rede articulada, orgânica e peçonhenta. Ficam expostos os nexos funcionais entre a violência urbana e as quadrilhas que desviam recursos públicos, entre as licenciosidades da política educacional e a compra e venda de votos no Congresso Nacional, entre a falência das universidades públicas e as joias arrematadas pelo governador gente boa. O Brasil ainda não mostrou a cara, mas já dá para ver que a cara do Brasil é um organismo parasitário complexo e totalizante, que parece ter o monopólio de todos ilícitos e conseguiu até fincar postos avançados no exterior.
Do lado de fora desse organismo, restam a indiferença, o tédio e uma certa falta de ar. O novíssimo sonho de consumo da classe média nacional é emigrar. A exemplo dos muito ricos (entre eles alguns delatores) que já têm residências alternativas em terras distantes, agora são os remediados que, desiludidos, sonham com um passaporte estrangeiro. Só não dão conta de ir embora de vez porque se deixaram baquear, porque não encontram nem forças nem economias para pôr um projeto de pé, nem mesmo o projeto de sumir do mapa.
No Brasil, enfim, a leitura dos jornais é um suplício estético, um desconforto linguístico e um tormento moral. A vida real é tédio. O destino é imobilismo e resignação. Enquanto isso, a disposição ética se deprime.
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