É preciso olhar para o jogo feio dos políticos e para o desarranjo das instituições, a começar pela muito louvada Constituição cidadã, para entender o buraco das contas públicas nacionais. Esse buraco é cavado principalmente com a picareta política. Esqueçam, por enquanto, os inocentes manuais de finanças públicas e de macroeconomia. Revejam o noticiário da semana. Centrão cobra cargos e ameaça travar Previdência foi a manchete do Estadão na quinta-feira.
Não se trata de apoiar ou deixar de apoiar por ideologia, fidelidade a um mandato ou opinião a respeito de um tema particular. Há quem negue a existência de um déficit previdenciário, assim como há, até nos Estados Unidos, quem negue a chegada à Lua e outras façanhas do programa espacial. Há quem critique a pauta de reformas como ameaça a direitos fundamentais. Mas para boa parte dos congressistas a votação de projetos polêmicos é principalmente uma ocasião de negócio com o detentor da caneta mágica dos favores. Isso, no entanto, é só um detalhe, especialmente desagradável, no quadro geral de um amplo desarranjo político. Esse desarranjo envolve tanto o Legislativo quanto o Judiciário e a Procuradoria-Geral da República, uma entidade com ares de quarto Poder, embora a palavra “Poder” só apareça, no texto constitucional, na denominação de três grandes órgãos do Estado.
Em democracias tradicionais, o equilíbrio das finanças públicas é considerado um assunto de todos os Poderes. A importância atribuída à gestão mais ou menos austera do orçamento público diferencia os principais partidos, mas nenhum renuncia à responsabilidade pelo estado das contas fiscais. O mais comum, no Brasil, é agir como se o Executivo fosse o único responsável pelo resultado contábil da execução orçamentária e, portanto, pela saúde financeira do Estado.
A independência dos Poderes é com frequência confundida com autonomia fiscal, embora o Tesouro seja único e a Receita Federal seja responsável pela maior parte da arrecadação. Há poucos dias, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram renunciar a um aumento salarial obviamente excessivo nas condições econômicas de hoje. Mas a decisão foi tomada por 8 votos a 3, sem unanimidade, portanto, a respeito do assunto.
A demonstração de austeridade foi obviamente um esforço para evitar um desgaste de imagem. Como os salários de ministros do STF são o teto do funcionalismo, os procuradores da República tiveram de abandonar a proposta orçamentária com previsão de aumento de 16,38%. A Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público protestou, em nota, manifestando “profunda frustração” diante da decisão do STF. A avaliação da Suprema Corte, segundo o texto, “é equivocada e coloca sobre as costas das categorias o peso da crise instalada no País”.
A preocupação com o uso austero e eficiente do dinheiro público tem sido muito raramente demonstrada pelos chefes dos vários escalões do Judiciário, tanto na União quanto nos Estados. Isso é comprovado tanto pelas pretensões salariais quanto pelas mordomias, como o número de carros com placas especiais para uso oficial ou privado. Penduricalhos de remuneração, como auxílio-moradia, igualmente encarecem a função judicial e, em muitos casos, a legislativa. Detalhes patéticos, como o debate sobre o auxílio-paletó, têm aparecido na imprensa, mas a maior parte dos custos injustificáveis – como as enormes verbas de gabinete pagas aos parlamentares federais – tem sido raramente contestada.
A receita pública, em todos os níveis de governo, é uma grande pizza retalhada em primeiro lugar em benefício de quem deveria fiscalizar, racionar e racionalizar o uso do dinheiro pago pelo contribuinte. A proposta do indecente fundo de campanha, na paródia de reforma política encenada no Congresso, adicionará R$ 3,6 bilhões à conta da espoliação do Tesouro. Essa conta já inclui o fundo partidário, outra obscenidade. Partidos são legalmente definidos como entes privados. Não se justifica subvencioná-los, apenas por serem partidos, com dinheiro público.
Mas a racionalização da despesa é dificultada também pela rigidez orçamentária. Essa rigidez decorre, em primeiro lugar, de regras constitucionais. Os constituintes fixaram porcentuais de receita para aplicação compulsória em educação e saúde. A intenção pode ter sido boa, mas a vinculação de verbas é uma estupidez. Prioridades podem mudar. Também podem ser diferentes, ao mesmo tempo, em diferentes Estados e municípios. Além disso, verba garantida para despesa obrigatória facilita a negligência na elaboração de planos e programas, estimula o desperdício e abre espaço à bandalheira. Se o gasto é compulsório, será preciso completá-lo, a cada ano, mesmo sem objetivos bem definidos. Nesse caso, tanto faz destiná-lo à reforma desnecessária de uma escola quanto aplicá-lo num equipamento superfaturado ou usá-lo, numa hipótese melhor, para um bônus a professores (isso também já ocorreu).
Sem cuidar dessas questões, o ajuste das contas públicas será sempre insuficiente e frágil. O reparo fiscal deve incluir, necessariamente, a reestruturação do Orçamento, para torná-lo mais flexível e possibilitar a racionalização da despesa. Boa saúde e boa educação serão obtidas com planos e programas bem construídos e bem executados. Vinculações demagógicas e irrealistas poderão enganar ingênuos e desinformados e facilitarão malandragens.
Tem-se falado muito, e com bons fundamentos, sobre a reforma da Previdência como indispensável à arrumação das finanças públicas. Mas é preciso pensar também na reforma orçamentária e na montagem de uma administração pública mais ágil, mais profissional, menos sujeita a indicações político-partidárias e, portanto, mais eficiente. Seria muito mais fácil a solução se o desafio fosse técnico. Mas o problema é em primeiro lugar político e seu histórico é assustador.
Rolf Kuntz
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