Fora do teológico essa indignação seria abusada caso não fosse fruto de uma visada marcada pelo estudo do exótico e do absurdo. Essas coisas que a nossa gloriosa civilização tocada à luta de classe, holocausto, guerras, alta tecnologia e supremacia do mercado ensina a superar mesmo liquidando o planeta...
Hoje, devemos tanto que nossas almas nada valem. O Estado deve tudo à sociedade — honra, vergonha e competência — como é o caso do nosso amado Brasil. Esse Brasil que nunca foi tanto “o país do futuro" como nestes tempos presentes.
Tentar compreender sem acusar, leva a simpatizar com o exótico e a estranhar o rotineiro. A descoberta mais importante, porém, não é saber que o “outro” é um estranho. É deparar como é difícil sair da canhotice que, nos canhotos, surge com a mesma naturalidade de uma língua que se aprende sem saber. O problema da diferença é como abandoná-la.
A diferença é o apanágio da literatura. Com ela, aprendemos que diferentemente dos demônios de outras terras, o diabo brasileiro de Machado de Assis não se contenta em adquirir almas.
Hoje vivemos o trauma de descobrir que o ruim não acaba com um messias, um partido, uma lei ou um ministério. Esse modo ingênuo de enfrentar desvios com o formalismo institucional é o erro do diabo machadiano. Por isso ele não recorre ao familiar engodo de uma troca sem reciprocidade, no melhor estilo de Marcel Mauss. Troca na qual o dinheiro entesourado, apodrecido e ligado à morte, é permutado por almas. O diabo brasileiro — tal como todos nós (incluindo este humilde cronista) funda uma instituição destinada a "resolver" de uma vez por todas o problema do bem. Ou no caso deste diabo, do bem como um problema.
Se os satanases de Grimm, Irving, Benét, Blatty são faustianos e individualistas, fiéis à tradição inventada por Lúcifer, vale lembrar que Lúcifer é o inventor da revolta (que divide o todo) e convém recordar que ele não chegou à revolução (que refaz o todo de modo contrário). Contentou-se lúcifer com o inferno e a fazer o mal por atacado: com insinuações malandras e bastante razoáveis no contexto de nossa humanidade. Quando, entretanto, descobre que sem uma “igreja” seria um eterno perdedor, surge a esperança.
É este projeto revolucionário que distingue o diabo sem nome de Machado de Assis. Indo além dos indivíduos, ele planeja agir através de uma igreja. Uma igreja baseada na transformação de vícios em virtudes. Feliz com a descoberta, ele a anuncia a um Criador curiosamente indiferente.
Agora, imagina o capeta, a luta do Mal contra o Bem se equilibrava. Mas logo o demônio descobre que, nas rotinas do pecado, virtudes subversivas insinuavam-se e eram praticadas na sua igreja. É quando constata que ele é também uma vítima da “eterna ingratidão humana" — essa ativação do canhoto na direita tão bem conhecida de Deus. Essa inversão capaz de desmoralizar dualismos, partidos e ideologias.
Diabos tradicionais são exorcizados. Atacam os inferiores estruturais como os pobres e as adolescentes em fase pré-menstrual. Mas uma igreja do diabo é algo absolutamente singular. Nela, o demônio tem doutrina, rituais e eclesiásticos. Ele — esse é o ponto — tanto quanto nós, acredita que um aparato externo vai resolver. Mas conforme eu tenho remarcado aqui e acolá, instituições precisam de seguidores. De nada vale uma constituição francesa sem franceses para segui-la!
A “eterna ingratidão humana" do diabo machadiano é a descoberta de que não basta uma ideologia. É preciso, como acontece com um idioma, de falantes. Tal como a poesia precisa de cantores e um drama de atores. O mundo, ensina o bruxo do Cosme Velho, jamais vai liquidar o mal valendo-se somente de leis, igrejas e partidos. Pela mesma fórmula, o bem jamais vai deixar de surgir como uma franja do mal. A dualidaade que desequilibra é a mesma que equilibra.
Mas, para enxergar isso, será preciso livrar-se da ilusão segundo a qual basta uma penada ou um ministério. O mundo que é bem mais complicado do que imaginava o nosso diabo.
Roberto DaMatta
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