Esse comportamento de vitimização associada à culpabilização alheia é parte integral da maneira como funciona o mecanismo perverso. Começa pela negação da realidade, tão conhecida e já estudada desde Freud. O sujeito se recusa a tomar conhecimento dos fatos reais, substituindo-os por falsidades e versões deturpadas, agora chamadas de fatos alternativos, pós-verdades, contranarrativas. Em seguida, na construção de um relato imaginário de martírio ou heroísmo, cultiva a disseminação de ressentimentos que espalhem e propiciem atitudes coletivas de cobrança e revanche, hostilidade e agressão difusa e indiscriminada dirigida contra todo e qualquer cidadão passível de não ser mais visto como próximo, compatriota ou merecedor de respeito, solidariedade ou compreensão — e então passa a conveniente alvo de agressão e justiçamento.
Caímos assim neste insuportável clima que vivemos, em que as pessoas parecem bandos de feras, alcateias de lobos ferozes à solta buscando quem atacar. Linchamentos digitais cotidianos extrapolam para eventuais linchamentos físicos. A estupidez ultrapassa todos os limites. Ativistas de uma nobre causa como o combate ao racismo se dão o direito de agredir quem amarra um lenço na cabeça, em nome da preservação do uso de turbantes como ridículo monopólio de um princípio inexistente. Mas o absurdo do episódio baseado numa falsidade não impede que a vítima sofra uma dor real.
Aliás, ninguém se sente responsável por nada. A ciclovia que desabou com a primeira onda mais forte e matou pessoas cai no mesmo poço de irresponsabilidade que a barragem que estourou, matou gente e animais, arrasou com todo um ecossistema e a economia de uma região. Os salários de funcionários que atrasam, os reajustes negados, as verbas que deixam de chegar para educação, saúde, saneamento, segurança pública e outros serviços essenciais, tudo isso é visto como se não tivesse relação alguma com o descumprimento das leis — tenha sido por meio de fraudes, compadrio, corrupção de todo tipo ou irresponsabilidade fiscal.
E quando algum braço legal tenta alcançar os culpados, é estarrecedor constatar como estes se mexem com tanta eficiência e esperteza para fugir à consequência de seus atos e atacar quem busca garantir a lei. Depois do motim dos PMs do Espírito Santo (que se escondem atrás das saias de mulheres muito organizadas e informadas e, jurando inocência, não assumem que estavam em greve), quando mais de 140 pessoas foram assassinadas e ainda não se conseguiu fechar a conta dos prejuízos, a principal reivindicação que fazem é anistia total, sem punição para ninguém. Tinham toda razão ao querer melhores condições de trabalho, ainda que haja versões bem diferentes quanto à defasagem de vencimentos e ao reajuste pleiteado. Perderam toda e qualquer razão por sua irresponsabilidade, ao descumprir a lei que juraram defender. Ficaram tragicamente ridículos com toda essa farsa e se igualam aos bandidos. Mesmo se a reivindicação inicial era justa, eles (ou suas mulheres) corroem seu direito ao contribuir para a morte de quem banca seus salários por meio dos impostos pagos.
Em Brasília e adjacências, os pilantras que querem enterrar a Lava-Jato aproveitam a pátria distraída com o verão e carnaval. Cumprem o planejado (e revelado em maio nas gravações de Sérgio Machado). Juntam-se todos, cada macaco no seu galho, em suas tentativas de obstrução da Justiça. Avançam seus lances nesse jogo de xadrez — para não irem para o xadrez real. Manobram por mais impunidade no descumprimento da constituição e do conjunto de leis que nos regem. Não uma reles portaria de qualquer juizeco, como diria Renan. Aliás, que fim levaram os documentos que a investigação tinha ordem de levar e que a polícia do Senado fez aquele escarcéu para impedir?
A lei é dura, mas é a lei, garante o sábio princípio que sustenta o convívio social. O que está acontecendo conosco, que assistimos boquiabertos a tudo isso mas nos anestesiamos a ponto de deixar escalar assim? Às vezes até tentamos nos enganar, como cúmplices que buscam dar razão a tantos coitadinhos, perseguidos, injustiçados por malvados perseguidores. Até quando? O que achamos que estamos construindo para o futuro? Em que isso tudo vai dar?
Ana Maria Machado
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