Eram tantas vezes um povo, um governo e um burro.
E conta que o povo tinha um bom burro, sua força de trabalho. E, para zelar por ele, tinha o governo. Isto é, o governo recebia para cuidar do burro do povo. E, bem ou mal, era o que ele fazia, mesmo.
Um dia, precisaram ir daqui para lá. Então, o governo propôs um arranjo: subiu nas costas do burro do povo, deixando-o a pé e a levar as duas malas. E se foram, tranquilos.
Ao desviarem o caminho para beber água num riacho, a lavadeira que lavava a roupa estranhou o arranjo e perguntou:
– Que animal bonito! De quem é esse burro?
– É meu, disse o povo.
– Olha, não que eu queira me meter na vida de vocês, mas, se é seu, por que é ele (o governo) quem está montado neste burro?
Ao desviarem o caminho para sentar à sombra da árvore para um lanche, o pastor que pastoreava ovelhas estranhou o arranjo e perguntou:
– Que animal bonito! De quem é esse burro?
– É meu, arfou o povo, momentaneamente aliviado do peso daquela burrice toda.
– Olha, não que eu queira me meter na vida de vocês, mas por que tanta carga está pesando nas costas do povo?
O governo ficou irritado outra vez: não haveria de ser um simples pastor a ter autoridade para questionar o arranjo que funcionava tão bem. Porém, diante da dúvida do povo, mudaram as posições. Agora, o burro, o governo e o povo andaram lado a lado, a mala do governo sobre o lombo do burro, o povo levando sua bagagem.
Ao chegarem no destino, o dono da venda que vendia víveres estranhou a maneira de viajarem e perguntou:
– Que animal bonito! De quem é esse burro?
– É meu, né?, duvidou o povo, consultando o governo com os olhos.
– Olha, não que eu queira me meter na vida de vocês, mas por que não usam essa força toda para aliviar o fardo do povo?
Aí o governo perdeu as estribeiras de vez: parece que todo mundo resolvera ter autoridade para questionar o arranjo que funcionava tão harmoniosamente. Ainda bem que já haviam chegado ao fim da fábula.
Imoral da história: o único que, diante do óbvio, nunca tem dúvidas sobre os arranjos do governo é o burro.
Rubem Penz
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