segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A guerra de narrativas não acabou

A guerra de narrativas não terminou com o impeachment de Dilma Rousseff. Nas ruas, nas salas de aula, nas redes sociais e também nas páginas dos grandes jornais e blogs ativistas, persiste a disputa pelo controle do imaginário de uma determinada fatia da classe média — demograficamente modesta, mas simbolicamente importante, por incluir intelectuais, professores, artistas, estudantes universitários e, de uma forma geral, os chamados “formadores de opinião”.

O campo lulopetista pode ter sido derrotado nas batalhas do Legislativo e do Judiciário, na batalha das urnas nas eleições municipais de 2016 e, de forma mais significativa, na batalha das ruas, onde o PT era hegemônico. Mas continua na ofensiva no front da linguagem. O objetivo aparente é determinar, de antemão, como será contada para as futuras gerações a história da crise que interrompeu o ciclo do partido no poder. Mas a própria crise revelou que toda tentativa de controlar o futuro é incerta.

Há três tipos de lavagem. A forçada, como o nome diz, é a mais radical e eficaz:

Inverte-se, em todo caso, o lugar-comum de que a História é contada pelos vencedores; no Brasil, país das jabuticabas, frequentemente prevalece a versão dos perdedores. Não é por acaso que se tentou insistentemente associar o momento atual à ditadura militar: porque, mesmo no poder, a ditadura fracassou (ainda bem) em criar uma narrativa vitoriosa. O que triunfou no imaginário coletivo dos brasileiros foi o enredo dos que resistiram.

Em parte porque, hoje e sempre, sobretudo para os mais jovens — para quem o reconhecimento pelo grupo social e a sensação de pertencimento são mais importantes que qualquer coisa — o papel de resistente “em defesa da democracia” é sedutor (principalmente quando assumir esse papel não traz qualquer risco ou consequência; como escreveu Ferreira Gullar, “agora que (ser de esquerda) dá prêmio, todo mundo é”).

Mas as diferenças objetivas entre o Brasil de hoje e o Brasil da ditadura são tão abissais que o empenho em se estabelecer qualquer paralelo já demonstra sinais de exaustão. Leio que o próprio Lula tenta se aproximar de Michel Temer e convencer o PT a superar o “discurso do golpe”, ao mesmo tempo em que o partido se acomoda no Congresso com seus supostos algozes. Em suma, a narrativa do golpe está se esgotando.

Para os aguerridos militantes das redes sociais e para os jovens formados na “escola com partido”, porém, nada disso importa: com inocência sincera ou falsa, eles aprenderam a ignorar todos os fatos que não se encaixam na lógica binária com que lhes ensinaram a enxergar o mundo. A linha de giz riscada no chão entre “nós” e “eles” é a face mais visível desse aprendizado. Deliberado ou não, o mau uso das palavras é outra.

Ao longo do processo que começou com a Operação Lava-Jato, passou pelo colapso da estabilidade econômica, culminou no impeachment de Dilma e continua com o bombardeio a Temer, uma vítima pouco lembrada dessa guerra é o sentido das palavras. Na distopia imaginada por George Orwell no romance “1984”, o controle da linguagem é uma ferramenta de controle do pensamento. Na mesma linha, na novilíngua brasileira, “golpe” respeita a Constituição, e “fascistas” defendem a redução do tamanho do Estado; “tolerância”, “democracia” e “censura” são outra palavras que ganharam novos e criativos significados.

Isso não é casual: é o resultado de um programa prolongado e sistemático de formação de um novo senso comum — de uma nova hegemonia, para citar Gramsci. Interrompido antes de chegar a seu termo, esse programa durou tempo suficiente para causar sequelas cognitivas em muita gente. Este é talvez o pior legado do ciclo lulopetista. A crise política e a crise econômica vão passar. Levará muito mais tempo para parte da população entender que a política não é uma disputa entre o bem e o mal. Muito menos no Brasil.

Luciano Trigo 

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