Encerramos a questão?
Dificilmente...
Se “tempo é dinheiro”, há momentos em que relógios são evitados. Oscilamos entre situações controladas pelo tempo e situações nas quais o tempo é controlado. Nas festas os relógios devem ser esquecidos.
O altruísmo — essa marca que desmonta o egoísmo individualista — confunde os fins e os meios. Ele faz o todo ficar mais importante que a parte e revela relatividade do tempo. Uma hora com a amada passa em segundos, e trinta segundos sentado num fogareiro dura uma eternidade! Há tempos sem preço, e tempos que rendem juros e multas.
Há também ocasiões em que presentes são dados sem simpatia. Chefes de Estado trocam presentes protocolares, namorados trocam flores, chefetes de gangues políticas dão, recebem e retribuem joias, relógios, quadros e festins. Tal como os velhos Potlacht das tribos do noroeste americano, as expedições Kula dos melanésios, e o nosso carnaval, os fins não estão em relação e ultrapassam os meios.
Em 1925, um fundador da moderna antropologia, Marcel Mauss, meditou sobre esse assuntos no seu crucial “Ensaio sobre a dádiva”. O presente, o dom, o regalo, a lembrança, o agrado, ele diz, seriam elementos constitutivos da vida coletiva. Tal como a linguagem que se faz trocando palavras, não há vida social sem trocas. Para Mauss, a troca pressupõe três momentos: dar, receber e reciprocar — ou seja — dar de volta. Todos esses movimentos são obrigatórios e formam uma vasta rede que nos acompanha do nascimento até a morte.
É uma ofensa tanto não aceitar quanto dar em demasia. E — como sabem os santos, os deuses e os caudilhos — é uma safadeza não devolver aos doadores as suas dádivas.
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Não é justamente essa ausência de reciprocidade que estamos testemunhando nessa nossa vergonhosa vidinha pública?
Não estamos todos ultrajados por termos dado tanto e recebido tão pouco em troca? Receber irresponsabilidade pelo nosso trabalho não seria uma ofensa que vai além das leis? Não é uma abominação descobrir que nossos impostos foram embolsado e repassados como doações ou presentes não para nós, o povo, mas para uma súcia da empresários?
A perversão da ética do dar-receber-e-retribuir faz deste cronista não apenas mais um idiota enganado mas o torna, acima de tudo, um cidadão acabrunhado de viver numa sociedade cuja elite tem como objetivo assassinar o cerne da sociabilidade humana. Esse princípio primordial de justiça que em todo lugar exige dos poderosos e dos ricos um mínimo de reciprocidade para com os doadores.
Impostos e votos são presentes.
A crise que vivemos não é um simples fato político, é um execrável incesto. Equivale a lograr a inocência de uma criança. É tão imoral como roubar as esmolas de um cego.
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A ausência de reciprocidade leva a desequilíbrios e a uma impensável ameaça: a do esgotamento do planeta pelo seu uso como uma entidade sem alma. Mauss assevera: “A liberalidade é obrigatória, porque Nêmeses (deusa da equidade) vinga os pobres e os deuses pelo excesso de felicidade e riqueza de alguns homens que devem desfazer-se delas: é a velha moral da dádiva transformada em princípio de justiça; e os deuses e os espíritos consentem que as porções que lhes dão e que são destruídas em sacrifícios inúteis sirvam aos pobres e às crianças”.
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Eis o que ouvi:
Um xamã da tribo dos Other Brecht, conhecidos encenadores de histórias do povo ao contrário, presenteou um Chefe-cantador com um relógio de luxo. Envergonhado, ele jamais usou a joia. Pelas leis das trocas, porém, ele não poderia devolvê-la ou revelar o motivo da doação. O regalo foi escondido até ser descoberto pela bruxaria do clã Republicano. Foi quando ele percebeu que os presentes têm um espírito que liga doadores e recebedores. Seu caro relógio-regalo denunciou-o. Afinal, todo presente excessivo vira veneno.
Roberto DaMatta
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