sábado, 2 de julho de 2016

Trabalhadores do Basil

O homem estava sentado num tamborete rústico, com os joelhos cruzados e a cabeça baixa. À sua direita havia uma mesinha de desarmar, entulhada de lápis de vários tipos e cores, folhas de papel em branco, borrachas, tesoura e um pouco de estopa. Havia ainda uma tabuleta em cima da pequena mesa, apoiando-se na pilastra onde estavam expostos seus trabalhos: fotografias coloridas de grandes personalidades e caricaturas também de grandes personalidades.

Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos.

Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça:

-- Você, Maria.

Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.

-- Aconteceu alguma coisa?

-- Não – murmurou a mulher.

O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência.

-- Não houve mesmo nada? – tornou o homem.

-- Claro que não, Zé. Eu vim à toa.

-- E os meninos?

-- Mamãe está com eles.

-- Como é que você arranjou para chegar até aqui?

-- Uai, eu vim.

-- A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa.

-- Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui.

-- Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido.

-- Fez alguma coisa hoje, Zé?

-- Fiz um – respondeu levantando-se. – Senta aqui. Você deve estar cansada.

A mulher sentou no tamborete, desajeitada.

-- Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem.

-- Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos.

-- Mas ela não estava doente?

-- Você sabe como mamãe é.

-- E o Tonhinho?

-- Está lá.

-- O carnegão saiu?

A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria.

-- Espera um pouquinho aí – disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas.

A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura.

-- Esses pastéis.

-- Oh, Zé, para que você fez isso?

-- Vamos, come um.

-- Você não devia ter comprado.

-- Vamos.

A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer.

-- Come o outro, Zé.

-- Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu.

-- Então eu vou levar ele pros meninos.

-- É pior, Maria.

O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantar-se:

-- Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém.

-- Não, eu passei a manhã toda assentado.

A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu:

-- Acho que eu vou andando.

-- Já vai?

-- Mamãe não aguenta eles, você sabe.

-- Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo.

O homem tirou uma nota de dentro do bolso do paletó e estendeu-a para a mulher.

-- Volta de bonde.

-- Não, Zé.

-- É muito longe, criatura.

-- Não.

-- Ora, minha nega

-- A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa.

-- Vou ver se levo.

O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes.

-- Não chega tarde não, viu, Zé.

-- Chego não.

-- Você vai fazer.

-- Hoje eu sei que vai melhorar.

-- Vai sim, Zé. Eu seu que vai. Eu sei.

A mulher se afastou rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato.

Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias.

Wander Piroli

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