Pulverizar a responsabilidade por um crime entre todos os membros de uma coletividade é uma prática bastante disseminada no Brasil. Quando um bandido mata uma pessoa em um latrocínio, sempre surgem vozes bradando que a culpa por aquele delito pertence a todos nós, na medida em que permitimos que pessoas de baixa renda vivam sem o mínimo necessário para que usufruam de uma vida digna. Sem nem aprofundar-me no mérito de que tal argumento representa, no mínimo, preconceito contra os despossuídos (e cria a sensação, no homicida, de que ele tem o “direito” de puxar o gatilho), indago: então a culpa por atos de corrupção também deve ser dividida entre todos os eleitores que escolheram determinado representante desonesto? Essa mentalidade coletivista deturpa o fato de que a pena por um crime não deve passar da pessoa do condenado, e apenas contribui com a sensação de impunidade vigente em nosso país. Votos obtidos junto a eleitores de boa-fé (sejam eles 54 milhões ou quantos forem) não podem ser usados como salvo conduto para transgressões, ou mesmo para compartilhar a autoria de malfeitorias.
Este, aliás, é um dos principais divisores de água entre o “baixo clero” e os criminosos de colarinho branco: nossas ações eventualmente em desacordo com as leis e os costumes não possuem potencial agressivo contra um grande número de vítimas. Se alguém fura uma fila, não consigo imaginar os prejudicados sofrendo mais do que apenas indignação. Agentes políticos, a seu turno, são capazes de, por meio de simples negociatas ou canetadas, causarem padecimento a milhões de pessoas, com efeitos prolongados indefinidamente, e transfigurados em diversas facetas (desemprego, insegurança, fome, saúde precária, educação deficitária). As cominações penais, entretanto, costumam guardar relação inversamente proporcional com os prejuízos causados: políticos envolvidos em esquemas de apropriação de verbas estatais e que venham a passar algumas “temporadas” atrás das grades constituem exceção a um sistema que, normalmente, não pune tais criminosos com a severidade necessária para que seus pares passem a acreditar que a retidão na vida pública vale a pena. Muito ao contrário – Carlinhos Cachoeira às gargalhadas dentro do camburão da Polícia Federal não me deixa mentir.
Ora, se o custo de descumprir a lei é relativamente baixo, fica mais fácil entender porque os brasileiros que preferem“andar na linha” são frequentemente tachados de “otários”. Neste cenário, o “macete” passa a valer mais do que o conhecimento, e o “bizurado” é capaz de auferir melhores retornos do que o trabalhador diligente. Se o Prefeito não está nem aí para a minha rua (a deixou virar um queijo suíço e embolsou os recursos para sua recuperação), por que eu, indistinto sujeito, deveria me comprometer com sua limpeza, por exemplo? Constitui uma máxima das forças armadas que “o comandante é o espelho da tropa”. Ou por outra: uma mesma tropa pode se comportar de maneiras totalmente diversas sob diferentes comandos. Será mesmo que nosso povo seria tão despreocupado em seguir as normas se vislumbrasse bons exemplos vindo de cima – de seus comandantes?
Vale dizer: e se o brasileiro pudesse experimentar a sensação de que, uma vez colaborando com todo o sistema legal, este lhe recompensaria regiamente, ao invés de puni-lo com a percepção de que todos os que burlam este sistema estão em vantagem sobre ele? Brasileiros que alugam carros em viagens aos Estados Unidos e ao Canadá, e dirigem como verdadeiros lordes (ao passo que, em nosso país, conduzem como o personagem Dick vigarista), ajudam a elucidar esta questão: o ambiente condiciona, e muito, nossas condutas. Outra evidência disso surge quando se propõe o exercício de reflexão invertido: o que acontece quando estrangeiros que residiam em países de cultura mais submissa às normas vem morar no Brasil por um período prolongado? Sabemos do que a singular capacidade de adaptação do ser humano às condições externas é capaz: é claro que esses outrora lordes irão, gradativamente, perder a consideração e o respeito pelo sistema – inclusive em se tratando de pessoas jurídicas, que vem para cá fechar negócios sabedoras de que precisam “jogar o jogo” de acordo com nossos hábitos pouco salutares, ou nada feito.
Contribui sobremaneira para que o arcabouço jurídico de nosso país seja solenemente ignorado por muitos brasileiros o excesso de regulações e leis. O estapafúrdio número de parlamentares das três esferas do poder querem justificar sua existência, e, neste intuito, passam a legislar em escala industrial – com o agravante de que, enquanto muitos projetos para a elaboração de legislações importantes ficam esquecidos em gavetas, verdadeiros escárnios com o cidadão são propostos e aprovados. Tem como culpar alguém por não levar a sério um Estado que estabelece a obrigatoriedade de uso de determinado tipo de extintor de incêndio automotivo, e meses depois muda de ideia e revoga tal determinação, por exemplo? Não à toa, muitas leis no Brasil “não pegam”, caindo em descrédito e não surtindo nenhum efeito prático na vida de ninguém. Aliás, o único resultado desta overdose de leis insensatas é indicar ao brasileiro que ele não deve esquentar muito a cabeça com as normas.
O brasileiro, então, passa a viver em conformidade com um conjunto de regras paralelo ao Estado de Direito, mais adequado a sua realidade (totalmente desconsiderada quando da confecção das leis) e que lhe permite viver melhor – ao menos levando em conta os resultados de curto prazo. Até mesmo moedas locais têm sido adotadas, como decorrência natural do sentimento de não pertencer ao grupo de beneficiários de tudo aquilo que sai de Brasília, e de não confiar nas resoluções emanadas do poder público.
Vejamos como até mesmo no futebol tal fenômeno se manifesta: o famigerado “fair play”, onde o jogador adversário deveria, em tese, jogar a bola para fora do campo sempre que outro jogador (ainda quede outro time) precisasse de atendimento médico. Como a FIFA, entidade máxima do futebol mundial, e cuja reputação não faz inveja a nenhum político brasileiro, sempre omitiu-se de delegar ao árbitro do jogo esta responsabilidade de paralisar a partida nestas circunstancias (ao contrário, ela estimula o fair play), muitos jogadores, naturalmente, passaram a usar em proveito próprio tal possibilidade, fingindo lesões e causando desentendimentos. Ou seja, não existe vácuo no poder: se a autoridade designada não souber resolver um conflito, ele será solucionado por aqueles afetados por este conflito – da forma que melhor lhes convier, por certo. Essa tendência a autotutela também é percebida quando assaltantes são amarrados a postes, constituindo demonstração clara de descrença no Estado e em sua capacidade de promover a ordem.
Constatar que o brasileiro tem encontrado pouca alternativa senão descumprir determinadas leis não visa justificar odesrespeito às normas, mas sim explicar que, como bem ressaltado no clássico filme Jurassic Park, “A vida sempre encontra um meio” – e o povo também: se o governo o coloca contra a parede, ele vai reagir, tal qual manda o instinto de qualquer animal. E essa reação, no mais das vezes, é extremamente prejudicial à sociedade como um todo. Se apenas determinados empresários “amigos do Rei” são beneficiados com a regulação estatal, os demais empreendedores buscarão meio alternativos de sobreviver à carga tributária escorchante, inclusive sonegando impostos – infração legal que irá importar em perdas para todos os destinatários de recursos públicos.
Antes que alguém ventile a hipótese de reforma eleitoral como solução para o problema aqui aventado, enfatizo que o destino da maior parte do dinheiro público roubado não são campanhas eleitorais, e sim contas na suíça (ou bolsas e sapatos de Paris). Instituir o voto distrital, o recall, o Parlamentarismo, seriam todas medidas que contribuiriam, sem dúvida, para o saneamento do sistema representativo, mas somente a efetiva punição de todos os envolvidos em corrupção pode representar uma verdadeira mudança de paradigmas.
E, nesse intuito, é providência essencial reduzir o tamanho do Estado brasileiro. É piada de mau gosto acreditar que os órgãos de controle externo irão, de alguma fora, reunir condições para fiscalizar tantos contratos públicos, celebrados Brasil afora a cada minuto, enquanto estou escrevendo este texto, inclusive. Se a ocasião faz o ladrão, por que oferecer tantas ocasiões aos agentes políticos? Não é crível que um cachorro vá postar-se diante de uma costela assada e não devorá-la, a não ser que tenha muito receio das consequências, e/ou que a carne esteja fora de seu alcance. E ambas as diligências, no caso em tela, são indispensáveis.
A educação (tanto a formal quanto aquele fornecida em casa) também deveria proporcionar ao brasileiro condições de entender que, na vida em sociedade, não é recomendável pensar apenas em si mesmo, e que agir como se estivéssemos em uma bolha, normalmente, faz a bolha estourar. Mas convenhamos que é missão quase hercúlea para um professor persuadir um aluno a seguir regras quando só o que o jovem vê na TV é roubo e impunidade, bem como é tarefa quase inexequível convencer um filho das vantagens de ser honesto no Brasil atual (haja cara-de-pau). Ou seja, quando a teoria que se pretende lecionar encontra-se tão afastada da prática diária, tal ensinamento afigura-se como pura abstração – e entra no ouvido direito e sai no esquerdo.
Será que nós, brasileiros, merecemos viver no caos urbano, sob o pretexto de que somos um povo de malandros e aproveitadores? Toda boa pergunta merece uma boa resposta, e, muito embora não seja o caso desse questionamento, eu respondo: Não! Tenho plena convicção que este país tem jeito, e que, dentro de algumas décadas, nosso povo pode vir a estar irreconhecível, cumprindo as leis e tomando atitudes pensando no coletivo, e não apenas objetivando lograr vantagens para si próprio. E seria um ótimo pontapé inicial se o exemplo viesse de cima – ou do Planalto Central.
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