É impressionante como os alarmados espíritos a respeito das eventuais ameaças vindas do governo não tenham se escandalizado quando o ministro anterior, Eugênio Aragão, ameaçava as equipes se sentisse “cheiro de vazamento”. E o antecessor, José Eduardo Cardozo, só não o fez porque não conseguiu; e acabou, numa sessão notável da comissão do impeachment, ao invocar o colega Thomas Turbando, confessando a real e exasperante tarefa dos defensores de Dilma.
O tal complô do novo governo, entendem os pró-eleições-já, seria a sequência da conspirata que afastou Dilma Rousseff. Sim, aquela presidente de crimes em série; a czarina do petrolão; o poste autoritário que despreza os limites da democracia aos poderes e quereres de um poste com complexo de governante; a mandatária que inaugurou dramas novos no país cujos dramas antigos ela ignorou enquanto os aprofundava.
Contudo, é normal e mesmo desejável que Renan (ou quem quer que seja o presidente do Congresso) se reúna com Temer (ou quem quer que seja o presidente interino), num encontro às claras na calada da noite, depois de termos assistidos entre a perplexidade e a repulsa um jeca sem cargo receber deputados de alta rotatividade, num hotel, tentando comprar votos contra a admissibilidade do impeachment. Na velocidade dos dias, parece longíqua mais uma patifaria do presidiário misteriosamente adiado ocorrida há somente dois meses.
A falação esquisitona de Sérgio Machado tentando envolver Michel Temer encurtou ainda mais o tempo para se respirar, ou refletir. Num país já transitado para a civilização, seria inadmissível o presidente manter o posto; mas também seria inadmissível um troço como Sérgio Machado. É essa velocidade que quero comentar. Ralph Waldo Emerson (poeta e filósofo americano do século 19) afirmou que “quando se patina sobre o gelo fino, a segurança está na velocidade” para sintetizar a transição na Modernidade em que não há mais chão – ou há este de gelo que nada sustenta –, tudo é questionável e mutável, guiado pela racionalidade que, prometendo organizar tudo, voltou-se contra si mesmo, passando ela também a ser objeto de exame.
Nessa aceleração das mudanças promovendo incertezas, aprofundar-se – num pensamento, ação, valor ou sentimento – poderia significar afundar. O simpático filósofo polonês Zygmunt Baumann usou a frase do americano para ilustrar a eloquente imagem do “mundo líquido”, erguido já pela pós-modernidade na falência da racionalidade como solução, deixando claro que corremos atrás da… do… de quê? Os dois filósofos, portanto, provam que refletir é essencial.
Na velocidade voraz, a pausa é imperiosa para alcançar, senão o luxo da compreensão, a satisfação do básico: refletir. Sem isso, a camada de gelo sob os pés dos brasileiros pode se romper e só não afundaremos se pudermos supor um cordão de alguma sanidade e lógica em torno desses dias incessantes em que tudo parece relevante, bombástico, emblemático, simbólico, decisivo, definitivo. Assim, as reuniões discretas de Temer, mas divulgadas, longas ou não, não deveriam escandalizar ninguém.
Além disso, ele governa com honestidade quanto às próprias despretensões políticas, com a firmeza possível para quem não sabe se será promovido de interino a transitório, com a articulação política disponível em meio ao quase caos, com a gestão administrativa arrancada das garras dos lulopetistas que, em algumas situações, não entregaram nem mesmo as chaves de muitas salas. Se não buscarmos algum distanciamento, alguma baliza, algum parâmetro, a interinidade naufraga sem ter tido a chance de ser o que acho (ainda) que pode ser: nossa transição possível até o outro lado da… do… disso.
Ainda que caiam ministros como as folhas no outono e entendendo que nossa melancolia atinge os ossos também porque muito acontece e, aparentemente, não saímos do lugar, creio que Temer se fortalece quando se livra dos delatados sem acusações contra a Justiça, o jornalismo independente, as elites, etc. Ou seja, superamos o modelo lulpetista. Mas a matriz putrefata está ativa e a lista de Machado, pretendendo misturar sujos e mal-lavados para que a sujeira e a meia-limpeza de uns redimam as dos outros, remete a ela. Se não refletirmos, essa matriz odiosa nos manterá um país intransitivo.
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