Todo coletivo é uma abstração. Quando falo da África, meus filhos dizem que a África não existe, que eu estou generalizando, e perguntam, “Qual África, a do Norte árabe e muçulmano ou a África Subsaariana?” Se eu disser que é a Subsaariana, eles dirão que ela também não existe e vão querer saber de qual país especificamente eu estou falando. Será da Guiné, da Guiné Equatorial ou da Guiné-Bissau? E poderíamos continuar, seriam os Fulas, os Balantas, Manjacos, Mandingas, Papéis ou alguma outra das mais de 20 etnias que vivem na Guiné-Bissau?
Quando nos debruçamos sobre a metodologia utilizada pelos organismos internacionais para comparar os indicadores econômicos e sociais dos vários países do planeta, nos deparamos com inúmeras “liberdades” muito pouco criteriosas, como a utilização de índices proxy (indiretos, análogos) para dados não disponíveis em determinados países; e a utilização de indicadores extrapolados de países que apresentam características “semelhantes”.
Mas, embora com vários problemas metodológicos, os indicadores sociais dos organismos internacionais acabam por refletir sim a “realidade” dos diversos países do mundo – a realidade do ponto de vista do ocidente, mais precisamente da União Europeia e dos Estados Unidos.
Até o século XVIII, a riqueza entre as nações do mundo não era muito diferenciada. A significativa disparidade econômica teve início com o capitalismo industrial, que provocou, a partir do século XIX, a desestruturação das sociedades agrárias europeias, um intenso fluxo migratório em direção às cidades e a imigração em massa de alemães, escandinavos, eslavos, espanhóis, franceses, ingleses, irlandeses, italianos e portugueses para as Américas. A África foi completamente colonizada e as longínquas e tradicionais China e Índia foram submetidas ao ocidente no mesmo período.
No início do século XX, diante do refluxo da hegemonia inglesa, o mundo mergulhou na Primeira Guerra Mundial, que marcou o fim dos impérios multiétnicos, multiculturais e multilinguísticos Austro-húngaro, Otomano e Russo. Na sequência, mergulhamos na Segunda Guerra Mundial, na Guerra Fria entre os blocos capitalista e comunista… e aqui chegamos aos tempos interessantes deste século XXI, entre as guerras no Haiti, Ucrânia, Congo, Sahel (sul do Saara), Sudão, Somália-Etiópia, Iêmen, Palestina, Líbano, Síria, Iraque, Afeganistão, Mianmar…
Com a generalização da mercadoria, a sociabilidade e o consumo distanciaram a Europa e os Estados Unidos dos demais países – e o padrão de vida ocidental passou a ser referência mundial. Do ponto de vista do ocidente, as sociedades exóticas gostariam de atingir o status ocidental, sinônimo de “civilização”. As elites de todos os países do mundo mandam seus filhos estudar nas universidades europeias e norte-americanas e, dessa e de outras formas, os valores ocidentais passam a se contrapor aos valores das sociedades tradicionais. Alfabetização, racionalização, progresso, desenvolvimento e nível de consumo passaram a ser vistos como a meta a ser alcançada pelo resto do planeta. E os indicadores econômicos e sociais dos organismos internacionais pontuam a distância de cada um dos países ao “paraíso terrestre”.
Enquanto isso, massas de imigrantes batem desesperadamente à porta da Europa e dos Estados Unidos. Levas de habitantes do terceiro mundo se arriscam para fugir das guerras e do “atraso de vida”, em busca da “civilização”. Muitos perecem no caminho, outros voltam deportados, e os demais submetem-se a viver como imigrantes ilegais ou cidadãos de segunda categoria em sociedades xenófobas.
O ocidente, o paraíso terrestre, ao que tudo indica, está pagando a conta de sua selvagem colonização do globo. Ernesto Mané, em Antes do início, cita um diálogo em Lisboa em 2011 – “… alguém lhe disse: ‘Preto, volta para a sua terra’. Ele respondeu: ‘Vocês chegaram à minha terra em 1400 e, de lá, só saíram em 1978; eu estou na sua terra há apenas três anos, então falta muito ainda para estarmos quites.’

Nenhum comentário:
Postar um comentário