Duro foi despencar do universo rarefeito da poesia, essencial à expressão humana, e voltar a pousar no cotidiano local que a cada dia se apresenta mais desumano — por doentio e doente. O Brasil está doente de Covid-19, cuja origem a ciência ainda não desvendou 100%, mas cuja feroz mortandade, em solo pátrio, já tem responsabilidade e origem escancaradas — o governo Jair Bolsonaro. Como doenças, mesmo as mais perversas, se curam ou são combatidas pela ciência, algum dia os sobreviventes do horror atual haverão de respirar melhor e sem medo, com o resto do mundo.
Já a violência nacional não é doença. É, sim, doentia, cria da própria sociedade e não curável pela ciência. Continuará a ser estrutural até que gerações futuras queiram mudar a história do país.
A semana começou em cavalgada. O desfecho da caçada ao assassino em série Lázaro Barbosa, com toques de “Götterdämmerung” tupiniquim, foi o retrato da ostentação policial do Brasil atual. Ao faroeste cinematográfico somou-se até mesmo uma deputada federal de 72 anos, Magda Mofatto (PL-GO), que apareceu nas redes sociais a bordo de um helicóptero, como se rumasse à caça ao bandido. Tinha um fuzil de uso militar em punho e envergava uniforme de campanha. O simulacro fez sucesso.
Para os moradores de Goiás e do Distrito Federal, onde o assassino múltiplo disseminara mortes e pânico ao longo de 20 dias, poder aplaudir a ação policial e festejar o fim do medo foi mais do que compreensível. Já a celebração de vitória por parte do presidente da República, via Twitter e em maiúsculas —“LÁZARO: CPF CANCELADO” —, ilustra a necropolítica miliciana do chefe da nação. Segundo registro da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás, Lázaro foi alvejado por 115 disparos: 58 com pistola Sig Sauer, 32 com pistola Taurus, 25 com fuzil Bushmaster.
Lázaro era um criminoso de alta periculosidade, talvez até psicótico. Era dever do Estado capturá-lo a todo custo. De preferência vivo, para melhor explorar suas eventuais conexões e rastros. Mas ainda não foi desta vez. Sempre foi e continua a ser raríssima no Brasil a captura com vida de bandidos com a cabeça a prêmio — seja porque morto não fala, seja porque matar é mais fácil, e rajadas são mais midiáticas. O método acabou se tornando prática corrente também no abate de pés de chinelo do crime, ou meros “suspeitos”, ou ainda infelizes moradores pretos, pardos e/ou pobres no caminho de operações policiais.
Nos últimos tempos, instituições criadas para proteger o cidadão de ameaças externas (Forças Armadas) e internas (Polícias Militares) têm dado sinais de desvio de função mais acentuado. À medida que Bolsonaro se dedica a seduzir o baixo clero do Exército, este pode vir a sentir algum compadrio com policiais militares. E, à medida que as PMs estaduais se sabem apoiadas pelo capitão de Brasília, mais elas podem vir a se aproximar de práticas milicianas. Quanto aos milicianos de raiz, estes já vivem no país que gostam de chamar de seu. E servem de modelo oculto a “cidadãos de bem” armados, apreciadores da violência.
A semana iniciada com o esperado desfecho para o matador em Goiás se encerra numa calçada de São Paulo com o exercício casual do pequeno poder policial. Na quinta-feira, um rapaz e outras dez pessoas esquentavam mãos e corpo em torno de uma fogueira no estacionamento de um varejão da capital. O frio já havia feito 12 mortos por hipotermia no estado, segundo o Movimento Estadual da População em Situação de Rua. Chega uma viatura de polícia, o grupo se dispersa, mas o rapaz de 18 anos não conseguiu escapulir. Foi agredido a pauladas de ripas de madeira e socos pelos PMs, e sua bicicleta foi jogada em cima da fogueira. A cena foi registrada em celular, e a vítima apresentou queixa na delegacia.
Já, já o Brasil completará 200 anos. Quantos invernos mais de violência doentia?
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