Uso o verbo desmatar num sentido mais amplo de devastação da natureza. Pensadores alemães, com diferentes trajetórias e visões políticas, chegaram a conclusões semelhantes ao analisar o país no fim da Segunda Guerra.
Martin Heidegger afirmava que, ao transformar o mundo num objeto de inescrupulosa dominação sobre a natureza, o sujeito humano acabava se concebendo como uma coisa entre coisas.
Num outro ponto do espectro ideológico, Theodor Adorno e Max Horkheimer, em “Dialética do esclarecimento”, argumentavam que a violência que se impõe à natureza acaba se voltando contra a própria natureza interna do ser humano.
Ambos queriam explicar, entre outras coisas, as atrocidades do nazismo.
Durante todo este período do governo Bolsonaro, matar e desmatar sempre estiveram no centro de nossa crítica. Animais queimados, árvores derrubadas e índios dizimados e amedrontados por garimpeiros e desmatadores foram apenas um lado da moeda.
O outro lado: mais de meio milhão de mortes parcialmente provocadas por uma política negacionista, agravada por uma absoluta falta de empatia.
Durante quase dois anos, fixamos nossas denúncias no eixo montado pelos verbos matar e desmatar. Não foi inútil, uma vez que quase um terço dos eleitores de Bolsonaro já se mostrou arrependido de sua escolha em 2018.
Creio que um número maior ainda poderia se descolar de sua base de apoio ao se convencer de que desmatar e matar são políticas com que não concordam.
Estávamos nessa toada quando surgiu um outro verbo em nosso escasso vocabulário: roubar.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, caiu por causa de duas robustas investigações que apontam sua cumplicidade com desmatadores ilegais.
Logo em seguida, as denúncias que caem sobre a destruição da natureza e o negacionismo no combate ao coronavírus são associados a suspeitas de corrupção na compra das vacinas indianas.
Todo o paciente e diuturno esforço para descrever matar e desmatar, assim como a profunda relação entre eles, ganha um novo impulso com a aparição da terceira ponta do triângulo: o verbo roubar.
Pessoalmente, considero mais grave matar e desmatar. Mas a entrada do verbo roubar, nas circunstâncias brasileiras, torna a denúncia muito mais compreensível.
É ainda difícil estabelecer conexões entre o desmatamento e a perda da biodiversidade. Poucos se interessam por estarmos saindo da era dos mamíferos para a era da solidão, em que desaparecem as espécies em ritmo alucinante. Poucos se dão conta de que Homo sapiens se transformou no "Homo rapiens”.
Da mesma maneira, foi preciso o depoimento de cientistas na CPI da Covid para definir que poderíamos ter salvado um terço dos mortos se houvesse uma política correta no combate ao coronavírus.
Mas o verbo roubar, quando se trata de governo, é de uma simplicidade cristalina. Todos compreendem o que é pedir US$ 1 por vacina. Ou então, noutro caso, compreendem o que é tentar pagar US$ 45 milhões por um lote de vacinas que não foi entregue.
Ao longo destes anos, seja pela leitura dos jornais, seja pela experiência cotidiana, os brasileiros fizeram um doutorado em corrupção. Conhecem os mecanismos de desvio de grana, as desculpas do tipo “eu não sabia”, manobras para apagar os rastros.
Será por esse caminho, a incrível transparência do verbo roubar, que talvez possamos também fazer justiça aos mortos na pandemia, às arvores derrubadas, aos animais queimados vivos.
Não sei se posso chamar isso de otimismo. Mas é o que as circunstâncias históricas nos oferecem, e temos de nos apegar a elas.
Como dizia Hannah Arendt, a democracia é sempre uma chance de recomeço, gente de origem e trajetórias diferentes pode se encontrar e recomeçar.
P.S.: Errei ao dizer que Inocêncio de Oliveira morreu. Fez uma operação complicada, discurso de despedida dizendo que ia para o céu, mas sobrevive. Perdão.
Fernando Gabeira
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