Estas condições revelam o caráter das nossas políticas públicas e os interesses que movem nossas classes dominantes. Sua origem está no modo de produção escravista que – mesmo depois de superado – deixou a sua ideologia de “mando” perverso como herança autoritária das oligarquias regionais. Exemplo histórico: antes de ser deposto o Presidente João Goulart tentou iniciar um processo de desapropriação de terras, até o limite de 10 km ao longo das rodovias federais, ideia logo abortada pelo Golpe Militar burguês-latifundiário, por ser uma ideia “comunista”. Tite agora passa a ser “acusado” de comunista porque se atreve a pensar como cidadão preocupado com seu povo.
Comunistas? Vejam a “última fala do trono”, feita por D. Pedro II, por ocasião da abertura da 4a. sessão da Vigésima Legislatura”, em 3 de maio de 1889: “Nessa ocasião resolvereis sobre a conveniência de conceder ao Governo o direito de desapropriar por utilidade pública, os territórios marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais”. D. Pedro II, no final do Século XIX, certamente ainda não se deparara com a força burocrática da alta administração pública de um Estado de Direito tardio, nem com as oligarquias regionais, já organizadas para proteger seus “direitos” no jogo da política moderna.
Numa sociedade capitalista periférica uma burocracia civil e militar alheia ao público, se considera até hoje feliz – como disse Anísio Teixeira – tanto por poder fazer “o mal ou o bem, como verdadeiros deuses”. A interpretação da Constituição – em cada período – tende a revelar, todavia, não a força das normas que deveriam organizar a sociedade segundo os objetivos da Constituição, mas como a sociedade pode ser organizada sem que a Constituição modifique a vida já instalada, onde a maioria não dispõe da fruição comum dos bens necessários a uma vida digna.
Quando esta burocracia serve a Governos legítimos – eleitos democraticamente – que governam em consonância com os protocolos da democracia política, o fluxo das instituições exerce um certo poder corretivo sobre a burocracia e tende a equilibrar o que Anísio entendia como “bem” e “mal”, interesse público e interesses de classe, interesses de castas e vocações políticas da nação, equilíbrios que formariam lentamente – ou por saltos – ao longo dos séculos, a cultura e a ideologia dos diversos núcleos de poder das classes e das castas burocráticas que controlam os mecanismos públicos de poder.
Pode ocorrer uma “transição pacífica” para o fascismo, com o desmoronamento da ordem política liberal representativa esboroando-se, sem ações violentas contra a resistência da democracia liberal? Provavelmente não, mas a hipótese não é improvável se as classes hegemônicas, num dado momento de crise num certo país, se unificarem no entendimento que o regime liberal-democrático pode prejudicar gravemente os seus interesses imediatos. É o momento em que os seus dirigentes falsificam os opostos e podem aderir em massa à hipótese fascista.
Esta falsificação dos opostos já ocorreu aqui no Brasil de maneira exemplar, quando parte dos tucanos, pemedebistas e outros lideranças dita “democráticas”, mais o resíduo informe do oportunismo e da corrupção liberal, colocaram num mesmo plano os “perigos” de um Governo Bolsonaro e os “perigos” de um Governo Haddad, para o futuro dos seus negócios.
Hoje, 7 de junho de 2021, suponho, será considerado um dia especial no calendário político da crise. Depois das grandes manifestações do dia 29.05, da reportagem de 12 páginas da The Economist sobre o delírio liberal-fascista que nos assola, dos gigantescos panelaços de repulsa a Bolsonaro, da anistia informal do general Eduardo Pazzuelo, da propagação pela Globo News da obscena reunião do Gabinete “Sombra” da Saúde – dirigido pelo Deputado Osmar “apenas 800 mortos” Terra – depois de tudo, a situação da crise atingiu o ápice da sua dramaticidade.
Este ápice sucedeu o decente depoimento da Dra. Luana “de que lado descer da terra plana” Araújo e está contido na fala psicopática do Presidente Jair “disso daí Bolsonaro”. É o momento em que a tragédia da genocida “imunização de rebanho”, gerou o ponto mais alto da hipnose fascista: o ponto da desumanidade delirante, pelo qual as mentiras fragmentárias em sequência se transformaram numa locução presidencial de produção de mentiras absolutas.
Segue o baile macabro. As enormes concentrações de lazer e o anúncio da Copa América, combinadas com pedido de arquivamento dos Inquéritos sobre as tentativas de golpe, pelo incrível Dr. Aras, colocaram a tragédia num novo patamar: as mortes da Pandemia se somam à fome endêmica, à indiferença de uma parte substancial da população pela morte (dos outros) e à “firmeza” bolsonarista da maioria das duas casas do Congresso, que “seguram” qualquer tentativa de “impeachment”, com deputados e senadores embalados pelas emendas liberadas e pelos orçamentos paralelos.
Todos os Governos que se sucederam no regime militar participaram, de algum modo, das regras deste jogo para governar. Nenhum deles, porém, atingiu o grau de indecência, anti-republicanismo militante, mentiras em série e manipulações “grupistas” e familiares do Estado, como o atual Governo. À medida em que as instituições não reagem contra este clímax de insanidade elas reforçam a possibilidade de uma transição “naturalizada” para o fascismo, como regime político que conquista alma, primeiro pela indiferença, depois pela militância fanatizada nas mentiras em sequência.
Marx falava na marcha inexorável do capitalismo industrial como um “Deus estranho que se instalou no altar ao lado dos velhos ídolos (feudais) da Europa e, numa bela manhã, com um empurrão e um pontapé derrubou-os por terra”, assim referindo às ideias do iluminismo que “refletiam o solapamento das velhas instituições políticas e econômicas pelo crescimento do capitalismo”. Hegel, no mesmo sentido, à Era Napoleônica, comparou esta transição com uma serpente, quando esta deixa cair “apenas uma pele morta (o feudalismo) – (quando) então será uma bela manhã, cuja tarde não estará tinta de sangue”.
As metáforas de Hegel e Marx, baseadas em Diderot, servem para inspirar uma reflexão sobre o avanço do fascismo no Brasil, naturalizado pela imprensa tradicional durante um largo período, já agora assustada com o seu resultado. Parece que o diálogo de Lula com Fernando Henrique pode funcionar como um aviso comum que esta transição já começou, de forma aparentemente pacífica, mas, ao contrário do que Hegel profetizou sobre a era Napoleônica, erradamente, depois do assentamento do fascismo evangélico “nova era”, as tardes estarão sempre tintas de sangue.
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