Um síndico de edifício zela pelo conjunto dos condôminos quando determina o uso de máscara aos funcionários, espalha recipientes com álcool em gel, restringe a circulação e fixa nas dependências do prédio comunicados aos moradores sobre a necessidade de cumprimento das regras, mas o atual presidente da República do Brasil nem como zelador seria bem-aceito. Não foi feito para a vida em comunidade.
Jair Bolsonaro condena qualquer tipo de proteção aos residentes da nação e ainda vilipendia quem trabalha em prol dos cuidados. Essa ausência de apreço pela vida alheia poderia ter explicação só na maldade, no desvio de caráter ou mesmo em algum tipo de dano psicológico grave, não carregasse junto doses oceânicas de cálculo político-eleitoral.
Não vejo, como apregoam alguns no afã de imprimir maior contundência ao exercício da oposição, que a ideia dele seja matar pessoas nem torcer para que morram. Isso dá dramaticidade à cena, mas cria um espaço de fantasia por onde transitam com muita habilidade o presidente e seus apoiadores, dando-lhes a oportunidade de exercer a reação com virulência igualmente irrealista. Nesse campo vicejam, por exemplo, as falácias sobre medicamentos inúteis, os malefícios do uso de máscara, o atraso na compra de vacinas e o alarde em torno de aludidos prejuízos, sem a correspondente serventia, do isolamento social.
O que há como fato incontestável é a insensibilidade presidencial ante a dizimação de vidas. Ao longo do último ano o presidente fez uma ou outra referência às vítimas e sempre de maneira protocolar. Enquanto rodopia com satisfação por aglomerações país afora e até Palácio do Planalto adentro, no decorrer deste ano de pandemia Bolsonaro não fez e continua não fazendo um gesto sequer de compaixão pelas vítimas do vírus com o qual desenvolveu uma relação afável.
“As vítimas do vírus não comovem Bolsonaro porque a ele importam mais os vivos aptos às urnas em 22”
Autoriza, assim, a suposição bastante plausível de que não se importa com elas porque estão mortas, e mortos não votam. Exagero na conclusão? Pode até ser, dependendo do ponto de vista, mas é o próprio presidente quem dá margem a esse raciocínio ao direcionar toda a sua atenção à conquista de novos públicos eleitorais e zero dedicação espiritual aos que se foram, além de mostrar-se indiferente aos que estão potencialmente condenados a ir.
E quem são esses novos públicos eleitorais? São os integrantes de uma massa que mistura ignorantes, insensatos e desesperados diante de perdas materiais agravadas pela incapacidade (agora e sempre) dos poderes públicos de lhes assegurar condições mínimas de suporte.
Perdido o mundo do dinheiro que não cairá em 2022 na mesma conversa de 2018, quebrada a fortaleza do universo político que em grande parte se afastou dele, derrubadas as bandeiras na nova política e do combate à corrupção, é para as camadas de desvalidos, de prisioneiros da crença de que tudo vai bem porque o presidente diz que está tudo bem, que Jair Bolsonaro dirige sua artilharia eleitoral.
É para eles que fala quando fustiga governadores e prefeitos divulgando dados distorcidos sobre repasses de recursos federais e ameaça não transferir dinheiro do auxílio de emergência para localidades onde autoridades imponham restrições mais severas à circulação de pessoas. É a eles que busca conquistar e fidelizar quando se jacta com frases do tipo “Não errei nenhuma até agora”, como disse dia desses em meio a uma aglomeração de fiéis.
É nesse alvo que o presidente mira quando enquadra governadores na categoria dos “maus” repressores da liberdade (seja de festejar ou de ganhar o pão), enquanto sobe no pódio do “bom” que baixa o preço do diesel e do gás de cozinha. É com os olhos voltados exclusivamente para si que mobiliza a máquina de propaganda do governo na produção de cenas de ajuntamentos cuidadosamente escolhidos para lhe referendar popularidade.
Assim, o presidente da nossa desafortunada, mas resistente, República busca (e consegue) intimidar ofensivas tão rigorosas quanto severos são os seus desmandos.
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