Nesta terça-feira, 2 de março do ano da graça de 2021, quando o país amargou o recorde de 1.726 mortos por covid num único dia, Bolsonaro disse ao seu rebanho: "Querem me culpar pelas 200 e tantas mil mortes. O Brasil é o 20º país do mundo em mortes por milhão de habitantes. A gente lamenta? Lamentamos. Mas tem outros países com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), renda e orçamento melhor que o meu em que morre mais gente".
Em maio do ano passado, um dia depois de discursar para uma aglomeração em que seus devotos pediam o fechamento do Congresso e do Supremo em frente ao Quartel-General do Exército, Bolsonaro justificou-se: "Eu sou, realmente, a Constituição." Agora, lança sobre o Brasil um olhar de fazendeiro. Ou de um monarca.
Bolsonaro não é, evidentemente a Constituição. Tampouco dispõe de título de propriedade ou de soberano. Não está autorizado a tratar o Brasil como se fosse um fazendão de sua propriedade. Ou uma monarquia onde reina um vírus. Mas o linguajar do capitão ajuda a entender o drama psíquico-administrativo que o leva lidar com a maior crise sanitária da história com o ânimo de quem cultiva o insolúvel como uma flor.
O Brasil ocupa o segundo lugar do mundo em número absoluto de mortes por covid, atrás dos Estados Unidos. Aqui, desceram à cova 257 mil pessoas. Lá, 515 mil. Levando-se em conta o número de cadáveres por 100 mil habitantes, o Brasil ocupa o 12º lugar num ranking elaborado pela Universidade Johns Hopkins.
Entretanto, Bolsonaro se refere à hecatombe com certo alívio. Não encomendou vacinas com antecedência. Mas considera-se o benfeitor da cloroquina. "Por que está morrendo menos gente aqui? Tem que ter uma explicação. Seria o tratamento precoce? Se ficar em casa até sentir falta de ar, como dizia o sr. Mandetta, você vai para o hospital para ser intubado. E, se for intubado, você sabe, né? Em torno de 60% a 70% das pessoas infelizmente entram em óbito".
Outra fonte de alívio para Bolsonaro é a reinterpretação que ele faz de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. A despeito de a Corte já ter emitido uma nota de desmentido, o capitão imagina ter recebido salvo-conduto para sempre botar a culpa em alguém pelas restrições que a pandemia impõe. "Segundo o STF, isso cabe a governadores e prefeitos. Lockdown não é culpa minha: é de governadores e alguns prefeitos".
O Brasil não merecia semelhante castigo. Depois de suportar a esquizogovernança de Dilma, de encarar a cleptoanálise de grupo de Temer e de descer ao manicômio prisional em que Lula se fingiu de preso político durante um ano e sete meses, o país atura mais uma presidência de miolo mole.
Quem se enxerga como uma espécie de personificação da Constituição não se sente obrigado a seguir o texto constitucional. Interpreta-o à sua maneira. O Brasil não tem um presidente da República, Bolsonaro é que tem o Brasil. Governadores, prefeitos e empresários começam a desligar o personagem da tomada, equipando-se para adquirir as vacinas que o governo negligencia.
Trancado em seus rancores, Bolsonaro cogita desperdiçar energias com um pronunciamento em rede nacional de rádio e TV. Nele, voltaria a esgrimir suas idiossincrasias anticientíficas, diria que fez a sua parte ao enviar verbas aos estados e exercitaria o hábito de colocar a culpa nos outros. Curiosamente, algo como 30% dos brasileiros sentem-se confortáveis vivendo numa manicomiocracia. Mas um pedaço expressivo do país cultiva o desejo de receber alta.
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