quinta-feira, 4 de junho de 2020

Medo das ruas

É uma grande ironia que, depois de tanto tempo de apatia, os primeiros lampejos de manifestações anti-bolsonaristas de rua venham ocorrendo sob o signo do medo – e dos dois lados, se é que são apenas dois. Depois da forte adesão de entidades da sociedade aos manifestos em defesa da democracia nos jornais e na Internet, e do protesto das torcidas na Paulista que acabou reprimido pela PM de São Paulo, há novas manifestações oposicionistas convocadas para diversas capitais no próximo domingo. Sua organização, porém, está cercadas de dúvidas e sentimentos contraditórios.



Parte da esquerda politicamente correta teme ser acusada de fazer justamente aquilo que condena em Jair Bolsonaro: incitar, ou ao menos compactuar com a formação de aglomerações de pessoas durante a pandemia. Se dá crime de responsabilidade para Bolsonaro, como tantos gostam de repetir, dá para a oposição também – e esse é o argumento que, na superfície, sustenta a posição de quem é contra o comparecimento a essas atos, que continuam sendo convocados pela web por torcidas e outros grupos não ligados oficialmente a partidos e suas entidades.

Por trás disso, nas profundezas das discussões, está o receio concreto de integrantes da oposição de cair numa armadilha bolsonarista. Consideram que os confrontos deste início de semana em SP, no Rio e em Curitiba mostraram claramente de que lado estão as PMs: do governo federal, que vem falando a sua linguagem nas questões de segurança e lhe dando melhor remuneração. O temor, portanto, é de que os inevitáveis enfrentamentos com as polícias descambem para atos de provocação, violência e perda de controle das manifestações. Há quem acredite inclusive na possibilidade de haver elementos infiltrados jogando pela radicalização e liderando saques, atos de destruição de patrimônio e agressões.

Um cenário desses no domingo de protestos da oposição pode ser tudo o que Jair Bolsonaro deseja como pretexto para obter apoio de setores conservadores para o uso das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem durante manifestações. Ou até para coisa pior, usando-as para justificar medidas de força e sabe-se lá mais o que. O discurso do presidente de satanização da esquerda e suas declarações recentes não dão margem a enganos. A iniciativa de Bolsonaro de anunciar que, neste domingo, seus aliados não devem ir às ruas, deixando-as para os adversários, também deixou muita gente com a pulga trás da orelha.

Na prática o governo está morrendo de medo que seus opositores consigam colocar muita gente nas ruas – diferentemente do movimento bolsonarista, unido e barulhento, mas pouco expressivo em números. Do outro lado, a oposição está morrendo de medo de não conseguir encher as ruas na pandemia e ainda perder o controle dos protestos.

E agora? Vamos ou não vamos? É o que boa parte dos mais consequentes se indaga. Um difícil dilema para quem vê o país derreter e esperou tanto para ver surgir expressão mais concreta da insatisfação popular, ingrediente básico de qualquer movimento político contra o governo. Afinal, panelas fazem barulho e manifestos agregam forças políticas, mas não têm o poder de cassar presidentes.
Helena Chagas

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