“Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos e defesas inalienáveis perante um vírus e durante uma pandemia”. Podia ser assim a adaptação livre aos tempos da Covid-19 de uma das frases mais importantes de sempre em matéria de valores fundamentais (a da Declaração de Independência dos Estados Unidos, proferida paradoxalmente muito antes de se abolir a escravatura naquele país). Mas o que é uma verdade no papel e à face da lei – todos têm os mesmo direitos, proteção e deveres durante uma pandemia – não é autoevidente na prática. Muito pelo contrário.
A Covid-19 quando chega não é igual para todos. Nem aqui, nem em lado nenhum. São os mais pobres os mais afetados pelas pandemias, sempre. Ao longo dos tempos sempre foi assim. Noutros séculos, eram as condições higiénicas e de salubridade das casas que ditavam a maior propagação das pestes nos bairros mais desfavorecidos. Quando vivem 10 numa casa de uma divisão, quando não há sistemas de esgotos, quando os ratos coabitam com os humanos, é fácil de perceber que uma epidemia tem condições favoráveis à sua propagação.
Hoje continuam a ser as condições e a qualidade de vida que separam os mais pobres dos mais ricos, e que expõem estes a maiores riscos. Por todo o mundo, há bairros da lata sobrelotados – onde vivem mil milhões de pessoas, uma em cada 7 seres humanos no planeta – que são verdadeiras incubadoras de Covid. E é nesses bairros mais pobres que ela mata mais, claro está. A Covid-19 aumentou rapidamente em áreas urbanas em expansão no Brasil, Nigéria e Bangladesh exatamente por causa disso. E, na maior parte dos casos, ela mata e simplesmente não se sabe, porque não há acesso a testes nem a cuidados de saúde elementares. E os enormes tumultos nos EUA que surgiram depois do assassínio de George Floyd são sintoma de uma panela de pressão que vinha de trás e que a Covid-19 só veio agravar mais: a discriminação racial e a desigualdade social e a frustração, raiva e desalento que trazem consigo.
Em Portugal, também a Covid-19 é um enorme segregador social. Há os que conseguem fazer teletrabalho, confinar, comprar todo o tipo desinfetante e máscaras para toda a família. E depois há os que não se podem dar ao luxo de parar, os que têm de continuar a trabalhar sempre, na linha da frente, em profissões tantas vezes pagas com o salário mínimo: caixas de supermercados, funcionários da limpeza, recolha do lixo, operários fabris ou da construção civil. Há os que circulam em carros próprio, e há os que têm de andar em autocarros e comboios onde é impossível manter as ditas distâncias de segurança. Há os que têm a cabeça livre para se cuidar, e há os que estão tão soterrados de problemas e dívidas, sem dinheiro para alimentar os filhos, e não têm cabeça para mais nada. E há os que ficam fechados numa casa confortável, com várias divisões e computador ou tablet para todos, e há os que nem conseguem pagar a fatura da internet.
São os mais pobres os que mais sofrem com a Covid-19, não tenhamos dúvidas. Expõem-se a maiores riscos não por vontade própria, como acontece com os mais ricos – que desconfinam e arriscam almoçar e jantar fora, sair e passear – mas por necessidade e sobrevivência. Um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública publicado há mês e meio já o tinha concluído: quem ganha menos está exposto a maior risco de contágio da pandemia. Esta semana, foi o presidente da União das Misericórdias, Manuel Lemos, que voltou a sublinhá-lo: os problemas económicos nos bairros mais carenciados impedem que muitos acedam por exemplo a coisas tão simples como as máscaras.
O que está a acontecer na região de Lisboa, onde se têm concentrado mais de 90% dos novos casos nos últimos dias, é sintomático. Não é de estranhar que existam focos muito ativos no Bairro da Jamaica, no Seixal, um conjunto de edifícios clandestinos e sem condições, onde mais de 70 famílias a aguardam um realojamento. Ou nos hostels que albergam refugiados, emigrantes e carenciados, como os casos da Morais Soares e de Caneças. Ou o que acontece na Azambuja, com vários focos, o mais recente no bairro social da Quinta da Mina, que envolve nove famílias, num total de 40 pessoas residentes num bairro construído ao abrigo do Plano Especial de Realojamento.
Onde há pobreza, há maior risco de Covid-19. Não vale a pena termos ilusões acerca disso. O que temos de decidir, como sociedade, é se queremos deixar estas pessoas à sua sorte ou tentar, no que nos compete, minimizar-lhes os riscos. Por exemplo, deviam ser fornecidas, gratuitamente, máscaras e luvas, tal como os desinfetantes para as mãos e para as superfícies; e reforçada a frequência dos transportes públicos, para que não se agrave a propagação.
Podemos não fazer nada e deixar andar, só não podemos depois fingir que não sabíamos que isto ia acontecer.
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