A frente de responsabilização tomou fôlego diante da decisão do STF que estabeleceu critérios na aplicação da Medida Provisória 966, que previa que agentes públicos só poderiam ser punidos por atos cometidos no enfrentamento da pandemia ao agirem intencionalmente ou terem cometido erro grosseiro. "Os ministros, entretanto, entenderam que qualquer medida adotada durante a pandemia que não esteja amparada na ciência, nos organismos internacionais e que seja feita sem a atenção ao princípio da precaução poderá ser considerada um erro grosseiro. Dessa forma, estamos falando de muita facilidade para instaurar qualquer um desses mecanismos de responsabilização”, explica Eloísa Machado, professora de Direito da FGV São Paulo e uma das coordenadoras do Supremo em Pauta. O Supremo já recebeu mais de 2.700 ações relacionadas à pandemia de coronavírus, entre pedidos de habeas corpus, ações indiretas de constitucionalidade e mandados de segurança. Por ora, os questionamentos estão relacionados ao sistema carcerário, direitos dos trabalhadores, calendário eleitoral, administração pública, pagamento de dívidas dos Estados à União, entre outros.
Para Machado “há elementos na conduta do presidente da República que já poderiam gerar investigações criminais e responsabilizações” em todos os âmbitos da Justiça, inclusive a abertura de um processo de impeachment. “O caminho está bastante avançado com relação a isso”, assegura. No âmbito penal, ela própria já assinou quatro notícias crime, endereçadas ao procurador-geral da República Augusto Aras, comunicando que Bolsonaro poderia ter cometido o delito de incitação ao descumprimento de medida sanitária preventiva, ao desrespeitar as medidas de isolamento decretadas por gestões estaduais e municipais. As ações foram movidas pela Coalizão Negra por Direitos juntamente com o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADU), mas acabaram arquivadas por Aras. “Estamos agora aguardando um recurso que está no Conselho Superior do Ministério Público”.
Há também a possibilidade de responsabilização administrativa, que poderia condenar ministros, governadores e prefeitos por improbidade administrativa, com penas de inelegibilidade ou ressarcimento ao erário público, segundo Machado. No caso do presidente, a improbidade administrativa se configura como crime de responsabilidade e poderia gerar uma responsabilização política, através de um impeachment.
Por fim, há ainda a possibilidade de abertura de processos na área civil, “onde todos os governantes podem ser responsabilizados a pagar indenizações por danos morais e materiais que tenham causado durante a pandemia”, explica Machado. Lígia Bahia, doutora em Saúde Pública e professora da UFRJ, ajudou a elaborar uma nota do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) que indica que ações por danos morais e coletivos serão movidas. Elas se basearão principalmente num estudo feito nos Estados Unidos de que o atraso em determinar medidas de distanciamento social custaram ao menos 36.000 vidas. “Entidades científicas e de defesa de direitos estão reunindo evidências e provas para a demonstração das consequências dessas irresponsabilidades, visando subsidiar iniciativas aptas a exigir a apuração de atos de improbidade e a reparação do dano coletivo. Todos têm direito de nascer, viver e morrer com dignidade. Vidas perdidas têm responsabilidades atribuíveis”, afirma a nota da entidade.
Machado lembra que a Constituição de 1988 “proíbe uma lei de anistia impedindo a responsabilização nacional por esses crimes”. Contudo, caso nenhuma das instâncias funcionem, o Estado brasileiro poderia ser responsabilizado em cortes internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA ou em comitês da ONU, e condenado a pagar indenizações para as vítimas da negligência do Governo ―como já ocorreu após as denúncias dos crimes da ditadura militar.
Já o Tribunal Penal Internacional (TPI) poderia condenar o próprio Bolsonaro caso entenda que ele cometeu um crime contra a humanidade no âmbito do enfrentamento da pandemia. A corte já recebeu duas denúncias ―uma do grupo Engenheiros pela Democracia e outra da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia― acusando o presidente de querer cometer um genocídio por suas atitudes ao longo da crise sanitária. “Há estudos que mostram que houve um aumento do descumprimento do isolamento após as falas de Bolsonaro de que a medida não adiantava de nada. Esse e outros elementos vão construindo uma possível tese de responsabilização e que pode gerar o entendimento de que houve uma política mais ampla de extermínio”, explica Machado.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou em 11 de março que o coronavírus era uma pandemia —ou seja, uma doença que já havia se espalhado por todos os continentes. Naquele dia, o Brasil contava com 52 casos registrados em alguns poucos Estados. A primeira morte só seria confirmada dias depois, em 17 de março. Enquanto países como Itália e Espanha contavam seus mortos, o Brasil estava em situação mais confortável, com tempo para analisar o que havia dado certo em outros países e evitar seus erros. “Estávamos à frente pelo menos duas semanas em relação aos demais países da Europa e Américas, ampliando a capacidade laboratorial, leitos, EPIs e respiradores. No entanto, como dizia o poeta e conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, ‘no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho", escreveu Wanderson de Oliveira, secretário nacional de Vigilância em Saúde até o dia 25 de maio, em sua carta de despedida.
A “pedra no meio do caminho”, no caso, era Jair Bolsonaro. O atual presidente da República é visto por governadores, parlamentares, médicos, cientistas e organizações da sociedade civil, dentro e fora do Brasil, como principal responsável pelas mortes que poderiam ter sido evitadas ao longo de quase três meses de pandemia. Durante essas semanas, Bolsonaro taxou a doença como mera “gripezinha”, encorajou as pessoas a desrespeitarem as medidas de distanciamento social e a ocuparem as ruas, fez pouco caso do número de mortos, entrou em choque com governadores, estimulou manifestações contra as medidas o isolamento social, boicotou o trabalho dos últimos dois ministros da Saúde, promoveu a cloroquina como cura do novo vírus apesar das escassas evidências científicas, circulou por ruas e causou aglomerações... Em suma, o discurso sempre foi o de que a economia não poderia parar. Entre os principais atingidos pelo coronavírus, o Brasil é hoje o único país que mantém a curva de contágios ainda em crescimento, como afirmou a OMS e reconheceu o Ministério da Saúde.
Ao fazer um balanço do combate ao coronavírus no país, Lígia Bahia explica que o Brasil viveu três ciclos, “cada um pior que o outro”. O primeiro ocorreu até a demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) em 16 de abril. “A reposta do Governo brasileiro sempre foi ambígua, porque primeiro a gente viu o presidente dizendo que era uma ‘gripezinha’ enquanto o Ministério da Saúde se preparava. Então, nessa fase, governadores e secretarias da Saúde eram os protagonistas junto com o Ministério da Saúde. Havia essa oposição da área da Saúde com o núcleo duro da Presidência”, argumenta. A segunda fase aconteceu ao longo do mês em que Nelson Teich ocupou a pasta da Saúde. “Houve então um alinhamento com a Presidência da República, mas que durou pouco, enquanto que governadores e Secretarias da Saúde tentavam reagir”, acrescenta.
O terceiro ciclo, continua Bahia, se iniciou com a demissão de Teich em 15 de maio e a entrada do general Eduardo Pazuello em seu lugar, interinamente, promovendo definitivamente o alinhamento da pasta com Bolsonaro. O principal resultado foi o “apagamento” definitivo dos setores técnicos da Saúde, explica a médica. “E agora os governadores já não conseguem reagir... Por mais que o Brasil seja uma federação, ele é super centralizado. Existe uma forte dependência dos recursos do Governo Federal, enquanto os poderes Legislativo e Judiciário estão focados em uma crise política sem precedentes. Então, esses governadores já não estão resistindo às pressões da área econômica e estão flexibilizando o isolamento”, explica Bahia. “Hoje temos um país que vai reabrir em plena curva de crescimento dos casos. Vai ser uma loucura”.
A comunidade médica e científica é unânime ao afirmar que as principais vítimas da covid-19 são idosos e pobres, como os dados vêm confirmando. Em uma das ocasiões em que foi questionado sobre as mortes, Bolsonaro respondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. "Bolsonaro entende que pessoas vão morrer de qualquer jeito e que tudo bem se morrem algumas a mais. É a ignorância em seu estado mais brutal”, afirma Bahía. Nessa mesma linha opina Izabel Marcílio, médica infectologista do Hospital das Clínicas de São Paulo, referência no tratado da covid-19. “Não vejo que exista uma política de extermínio, mas certamente é isso que acarreta. Ao mesmo tempo, dizer que o Governo é negacionista é simplificar demais. É um eufemismo para tamanha irresponsabilidade e tamanho absurdo que estamos vivendo”.
Para além do descaso de Bolsonaro, as especialistas apontam que outras autoridades também cometeram erros ao longo da pandemia —e, eventualmente, também podem ser responsabilizadas por eles. “O ministro Mandetta estava agindo como médico e se preocupou estruturar o sistema de saúde, mas mesmo ele deixou de fazer muita coisa", explica a médica epidemiologista Izabel Marcílio. “Fomos protegidos pelo acaso pelo fato de o vírus ter começado na China, depois ter migrado para a Europa e para os Estados Unidos... A declaração de emergência internacional foi em janeiro. Tivemos muito tempo, entre um e dois meses, para se preparar”.
Ela lembra que o programa da Saúde da Família é bastante presente nos territórios. Esses profissionais da saúde, argumenta, poderiam ter sido mais bem aproveitados em suas regiões para identificar as pessoas com comorbidades e orientar a população sobre o que fazer. "Dava para, em janeiro, ter treinando essas pessoas, fornecido EPIs, comprado testes, ensinado a população como se isolar...”, explica.
Já Lígia Bahía aponta que, no momento em que possuíam mais força política, governadores que foram protagonistas na crise sanitária —como João Doria (PSDB) em São Paulo, Wilson Witzel (PSC) no Rio de Janeiro e Camilo Santana (PT) no Ceará— deixaram de aplicar o chamado lockdown, endurecendo as medidas de isolamento. Ela também destaca que nem todos os prefeitos e governadores fizeram oposição a Bolsonaro e muitos deles se alinharam ao mandatário durante a crise sanitária.
Como exemplo do descuido das demais autoridades, Marcílio lembra que o Governo Doria poderia ter aumentado as taxas de isolamento social ao ter restringido ainda mais atividades profissionais. Pelo decreto da quarentena, mais de 60% dos trabalhadores são considerados “essenciais” ―entre eles os da construção civil, um dos setores que mais emprega pessoas. A médica também cita como exemplo as mudanças no trânsito e no rodízio de carros que foram feitas na cidade de São Paulo pela gestão Bruno Covas para aumentar o distanciamento social. “Fizeram três tentativas em poucas semanas, obviamente não tinha ninguém por trás pensando”, afirma. "Se o poder central é péssimo, o poder estadual poderia ter feito melhor. E se este também não está funcionando, o município também poderia ter feito diferente”.
Para ela, o principal erro do Brasil no enfrentamento à pandemia está na comunicação. “O grande diferencial em países como Alemanha, a França e Nova Zelândia é que havia um discurso de acolhimento de dúvidas, dificuldades e medos, e que sabia orientar as pessoas em todos os sentidos. No Brasil, em nenhum momento houve uma comunicação efetiva das autoridades com a população.”
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