terça-feira, 31 de março de 2020

Uma data para ser lembrada como a do estupro da democracia

A ditadura militar de 1964 durou 21 longos anos – parte deles tenebrosos, com a morte e o desaparecimento de 434 pessoas e o envolvimento de 377 outras, direta ou indiretamente, em práticas de tortura e assassinato. A tortura a presos políticos e a eventuais inocentes foi adotada como política de Estado.

A liberdade e o respeito aos direitos humanos foram suprimidos no país por largo tempo. As garantias individuais, também. A Constituição foi rasgada e deu lugar a periódicos atos institucionais, o mais célebre deles o AI-5, que garantiram a continuidade do regime autoritário até ele se desmanchar.


Há dois dias, o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, disse que o golpe de 64, que ele não chama de golpe, é um fato que “pertence à História”. Se o reconhecesse como um fato positivo o teria dito com todas as letras, como no passado já disse. Mas seus ex-colegas de farda insistem em exaltar o feito.

Ordem do dia assinada pelo ministro da Defesa e pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica a propósito dos 56 anos do golpe completados hoje, confirma que os militares nunca engoliram e talvez jamais venham a engolir o fato de terem rompido com a legalidade e implantado no país uma ditadura.

Custa a crer, mas a ordem que será lida e distribuídas em todos os quarteis afirma que o golpe foi um movimento que representou “um marco para a democracia”. Como um marco? Marco de quê? Da destruição dos princípios e valores que distinguem entre um país democrático e outro que não é? Nesse caso faria sentido.

Faltou um bom redator para dar um trato à nota? Ou o ministro da Defesa e os comandantes das três armas querem mesmo dizer que um dos marcos da democracia entre nós foi a intervenção armada que depôs um presidente eleito pelo povo, substituindo-o por sucessivos generais “eleitos” por um Congresso emasculado?

Diz a nota que “o Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época&". Uma das utilidades do papel é que ele serve para que se escreva qualquer coisa. Que Brasil reagiu? As chamadas “forças produtoras”, a imprensa e parte da classe média assustada, como de hábito, apoiaram o golpe.

Mas daí generalizar e apresentá-las como se falassem pelo país... O povo, como em outras ocasiões históricas, uma delas a da Proclamação da República, a tudo assistiu bestificado. Povo! Como se usa seu santo nome em vão. Como a palavra povo serve para legitimar medidas que seriam para o seu próprio bem.
 
Não há um só líder político, em democracia ou ditadura, que não encha a boca para dizer que fala em nome do povo. Os mais modestos, se há algum modesto, diz que fala em nome dos seus eleitores. O presidente Jair Bolsonaro usa as duas formas de acordo com as conveniências do momento. Pura enganação.

O ex-presidente Tancredo Neves ensinava que político depois de eleições não tem mais voto – teve. Passou. A cada dia deveria se lembrar disso. Se lembrasse, cuidaria melhor do povo para reconquistar os votos que perdeu desde que o resultado da eleição foi proclamado. Bolsonaro parece não se dar conta disso.

Da ordem do dia sobre o golpe que inventou o falso “milagre econômico brasileiro”, um período que na verdade beneficiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres, só é aproveitável o trecho que reafirma que as Forças Armadas estão “submetidas ao regramento democrático”. No que não fazem nenhum favor.

No esforço de guerra contra o coronavírus faltam os militares

E as Forças Armadas, hein? Onde estão no momento em que o país se arma com atraso para sobreviver à primeira grande onda do coronavírus? O poderoso Pentágono, sede em Washington, do Estado de Defesa norte-americano, trabalha com a hipótese de que o mundo será atingido por três ondas a intervalos regulares.

Os militares estão sendo vistos nas principais cidades dos países mais devastados pela pandemia. Patrulham ruas, aplicam as ordens de confinamento, transportam caixões com mortos. Espera-se que por aqui nada disso seja necessário. Mas quem garante? E enquanto não se souber, o que eles poderiam fazer?

Não poderiam estar sendo empregados em ações de prevenção à doença – como? Eles sabem como. Falta uma ordem do alto? Do ministro da Defesa? Ele espera uma ordem mais do alto? Do presidente Jair Bolsonaro? Mas esse não parece interessado em dar. Do ministro da Saúde? Ele não dá ordens aos militares.

Em sua recente, moderada e neutra ordem do dia, o comandante do Exército elogiou médicos e enfermeiras aos quais chamou de guerreiros da linha de frente no combate ao coronavírus. Os militares não poderiam formar linhas de trás? Eles são bem treinados para agir em situações ainda piores.

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