terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Esquerda, direita e o embargo da memória

Após a condenação de Luiz Inácio Lula da Silva em segunda instância, intelectuais bastante respeitáveis defenderam, no campo da esquerda, mais uma vez, que não é hora de debater os 13 anos do PT no poder. A justificativa é a de que o momento exige que a esquerda e a centro-esquerda se unam para enfrentar a direita, em nome da democracia. Ao mesmo tempo, no campo da direita, que tampouco é coesa, Michel Temer (MDB) e as forças que o sustentam no poder, apesar das denúncias de corrupção (ou por causa delas), inventaram uma operação militar no Rio de Janeiro como mote popular para ter peso e influência na eleição de 2018.

Num campo, apresenta-se uma demanda para embargar a memória. No outro, usa-se a marquetagem política para silenciar realidades, criando um espetáculo. Ao ser produzida como factoide, caso da intervenção federal no Rio, o ato encobre o fato. A segurança é uma questão urgente. Mas não é possível enfrentá-la sem admitir que a política de “guerra às drogas”, que já foi abolida em partes mais sérias do mundo, é parte determinante do aumento da violência.

Em vez disso, consolida-se, pela escolha de uma operação militar, com soldados e tanques nas favelas e comunidades pobres, a guerra também como estética. De espasmo em espasmo, toda a atenção e a energia são deslocadas tanto para construir o espetáculo como para desconstruí-lo, como se testemunhou desde o anúncio da operação que tragou as atenções no Brasil e a maior parte do noticiário. Enquanto isso, o país se arruína um pouco mais.


Não pretendo usar mais parágrafos para analisar a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro como silenciamento das causas reais de uma violência que tem destruído as vidas dos mais pobres, em muito maior número a dos jovens negros. Há uma quantidade considerável de análises consistentes em circulação, produzidas por gente que se dedica ao tema há muitos anos. Meu ponto nesse artigo é analisar o silenciamento produzido no campo da esquerda ligada a Lula e ao PT. E como esses silenciamentos, só aparentemente polarizados, se conectam e se confundem.

A recente declaração do comandante do Exército ilumina a questão: o general Eduardo Villas Bôas afirmou, em 19 de fevereiro, que os militares que atuarão na intervenção no Rio precisam de “garantias para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. O que significa essa declaração? Que haverá torturas, sequestros e assassinatos de civis nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro como houve na ditadura civil-militar (1964-1985)? Que o general quer “garantias” para que as tropas possam torturar, sequestrar e assassinar civis em nome do Estado, na operação do Rio, sem responder por isso? Que o general quer quebrar a lei e oficializar o Estado de exceção?

A crise da democracia é global, mas há algo de particular na crise de cada país. Já escrevi em artigo anterior que acredito que as raízes da atual crise da democracia no Brasil estão no próprio processo de retomada da democracia, após 21 anos de ditadura. As raízes da atual crise brasileira estão no apagamento dos crimes do regime de exceção e na impunidade dos torturadores e assassinos a soldo do Estado.

Ao retomar a democracia sem lidar com os mortos e os desaparecidos da ditadura civil-militar, o Brasil seguiu adiante sem lidar com o trauma. Um país que, para retomar a democracia, precisa esconder os esqueletos no armário – ou em covas clandestinas – é um país com a democracia deformada, no qual as fardas são sempre um ponto de instabilidade assombrando o cotidiano. Uma democracia deformada está aberta a mais deformações, como a história recentíssima do Brasil é pródiga em provar.

A desmemória não é um traço banal na história do Brasil. Ela costuma ser defendida como um “agora não é hora”, “este não é o momento”, “depois a gente cuida disso”. Foi assim com a Lei da Anistia, de 1979, que até hoje grupos da sociedade lutam para rever com o objetivo de fazer a justa responsabilização dos torturadores e assassinos do regime. O ato mais significativo para lidar com a memória do período de exceção foi justamente a Comissão da Verdade sobre os crimes da ditadura, que tanto preocupa o general, e a série de movimentos em torno dela, como as Clínicas do Testemunho pelo Brasil afora.

Esse processo de produção e documentação da memória sobre a ditadura foi, porém, interrompido pelo atual governo. O fato de que a democracia no Brasil supera os 30 anos sem lidar com o passado autoritário é um forte fator de desestabilização que costuma ser minimizado. Os efeitos do apagamento estão visíveis hoje nas ruas.

O Brasil é carente de uma direita com postura responsável e projeto consistente, capaz de pensar o país para além da política rasteira de ganhos privados e locupletações imediatas. O campo da direita não é coeso, mas nele predomina o discurso tosco, que tem nas bancadas do boi, da bala e da bíblia do Congresso, assim como nas milícias da internet, sua expressão mais barulhenta. Forjar realidades falsas se impôs como modo de operação, como por exemplo a recente difusão de que os espaços da arte estavam tomados por pedófilos. No caso das milícias, o próprio anúncio de uma filiação liberal é uma falsificação, na medida em que a prática contradiz os valores liberais mais básicos.

Neste momento, porém, chama a atenção como a esquerda ligada a Lula e à parte do PT tem atuado para embargar a memória. Caminham neste sentido os ataques àqueles que buscam refletir sobre os 13 anos do PT no poder, associado intimamente ao PMDB a partir do segundo mandato de Lula, e o papel desempenhado pelo partido, por Lula e por Dilma Rousseff na atual situação do Brasil.

Nenhum projeto de esquerda ou de centro-esquerda para o país faz sentido se, para se manter, precisa apagar capítulos da história. Por todas as razões e porque não se pode construir um projeto responsável de país sem a compreensão de onde se errou, assim como a consequente responsabilização pelo que foi causado pelos erros. É possível cogitar a hipótese de que, se tantos não tivessem silenciado após a primeira denúncia do mensalão e adiado a crítica e a autocrítica para um dia que nunca chega, os rumos poderiam ter sido diferentes também para Lula, Dilma Rousseff e o PT.

A pedra que barra a operação de apagamento nas biografias de Lula, de Dilma e do PT se chama Belo Monte, uma das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Não é uma pedra, mas milhares de toneladas de aço e cimento no rio Xingu, no Pará, sob as quais pairam a suspeita de propinoduto nas investigações da Lava Jato. A forma como a usina saiu do papel, depois de décadas de resistência dos povos indígenas e dos movimentos sociais da região, é claramente suspeita desde pelo menos o leilão, em 2010.

Mas, nesta área, a da Lava Jato, sempre se pode negar e alegar inocência para a opinião pública. A forma e a rapidez com que o processo de Lula foi conduzido na Justiça, no caso do tríplex do Guarujá, a fragilidade das provas e o comportamento pouco convencional de juízes de ambas as instâncias, que opinaram antes de julgar, conduzem a dúvidas razoáveis sobre a legitimidade das sentenças, embaralhando ainda mais a paisagem já bastante enevoada do Brasil atual.

Em Belo Monte, porém, as violações ao meio ambiente e aos direitos humanos, promovidas durante os governos do PT, são literalmente visíveis. E bastante difíceis de explicar quando um político e um partido afirmam defender o povo – e afirmam serem perseguidos por defender o povo.

Como explicar que milhares de famílias foram expulsas de suas casas, terras e ilhas ou “removidas forçadamente”, sem nenhuma assistência jurídica, muitas delas assinando com o dedo papeis que eram incapazes de ler? Como explicar que as greves de operários da usina, assim como as manifestações contra Belo Monte promovida por indígenas, ribeirinhos, pescadores, agricultores e moradores urbanos de Altamira foram reprimidas pela Força Nacional no período em que o Partido dos Trabalhadores estava no poder?

Como explicar que o PT permitiu, quando não apoiou, que a obrigatoriedade da proteção dos povos indígenas durante a construção da usina, assim como das ações de mitigação de seus efeitos sobre o rio e a floresta, se desvirtuasse num fluxo de mercadorias? Que as aldeias indígenas, mesmo as de recente contato, recebessem de TV e colchão a açúcar e refrigerantes, produzindo o que foi caracterizado formalmente pelo Ministério Público Federal como “etnocídio” (morte cultural), sem contar um aumento de mais de 100% na desnutrição de crianças indígenas entre 2010 e 2012?

Como explicar que a violência urbana disparou, em grande parte por causa do processo de Belo Monte, e Altamira se tornou o município com mais de 100 mil habitantes mais violento do Brasil, segundo o Atlas da Violência de 2017, produzido pelo Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Nacional de Segurança Pública? Como explicar que os bairros construídos para abrigar as famílias expulsas de suas casas não cumprem os requisitos mínimos determinados durante o licenciamento da usina e hoje se tornaram os novos territórios de violência de Altamira, com casas que já exibem rachaduras e se deterioram de forma acelerada?

Leia mais o artigo de Eliane Brum

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