terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Perdão

A turma da Lava-Jato tem razão em estar chateada com os indultos de Natal, com o Gilmar Mendes e com outras evidências de coração mole que desfaz o seu trabalho. São todos jovens idealistas que ainda não tinham se deparado com uma antiga tradição nacional, a do brasileiro bonzinho.

Estão descobrindo que o Brasil corrigiu Marx: aqui a história não se repete como farsa, se reinventa como farsa.E o tempo é um revisor camarada. Cada nova versão da nossa história é mais benevolente do que a anterior.

O tempo brasileiro é conciliador, não guarda rancor. Na verdade, não guarda nada.

Quanto mais distante fica no tempo, menos conta o fato. O fato é neutralizado pelo tempo, emasculado como um gato.

Quando, finalmente, desaparece por completo no grande sumidouro da memória nacional, pode ser recriado à vontade. O Collor decretou que sua deposição foi uma farsa.

Ninguém o contradisse. Faz tanto tempo. Quem se anima a mergulhar no sumidouro para resgatar uma verdade hoje irrelevante?

A prisão do Maluf surpreendeu justamente por ser tão anacrônica. Maluf tinha uma estranha forma de impunidade, a que vem com o tempo camarada. Transformara-se, com o tempo, num corrupto folclórico, até simpático. E por que tocar num folclore, depois de tanto tempo?

O cara já não pagou pelo que fez (segundo ele, nada) com os anos em que foi nosso corrupto-mor sacramentado? Mas o tempo brasileiro, cedo ou tarde, inocenta todo mundo. É só o Maluf esperar sua vez.

Essa garantia tácita de absolvição é um velho hábito do nosso patriciado.

Nunca na história do país, mesmo com as oligarquias se entredevorando pelo poder e querendo a ruína do inimigo, alguém caiu totalmente em desgraça no Brasil. Desgraça profunda, irrecuperável, de se trancar no quarto e receber comida em marmita por uma portinhola, pelo resto da vida.

O tempo brasileiro sempre assegurou a remissão. E aí estão vilões do passado represtigiados, corruptos repaginados, banidos reeleitos e ninguém envergonhado. Collor chegou à Presidência como símbolo de combate à corrupção, saiu da Presidência como símbolo da hipocrisia do poder e volta como símbolo da inconsequência de tudo isto. O que só prova o que ele disse, se não a intenção do que disse. Tudo é uma farsa.

É de se ver se daqui a 15 anos (eu não vou mais estar aqui, mas podem me contar depois) Lula e seus governos terão a mesma deferência que o tempo brasileiro dá ao nosso patriciado. Acredito que sim. Lula não quer outra coisa desde o seu primeiro mandato a não ser se legitimizar como um membro confiável do clube que manda, com direito a todos os seus privilégios. Inclusive os do estatuto que trata do perdão implícito da história, não importa o que ele faça.
Luis Fernando Veríssimo

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