Memórias de guerra eram conversa comum na nossa casa quando minha irmã e eu éramos crianças. Meu avô serviu durante a Primeira Guerra, e meus pais chegaram ao Brasil quando a Segunda Guerra já ia praticamente pela metade. As lembranças do meu avô eram as típicas lembranças de um velho soldado: envolviam batalhas e mortes violentas, mas, atravessadas pelo espírito de aventura que move tantos rapazes em combate, eram paradoxalmente cheias de vida. As histórias dos meus pais, ao contrário, eram sombrias, e mesmo quando falavam dos que haviam sobrevivido, o seu leitmotif era a morte. Durante muitos anos li compulsivamente sobre essas duas guerras, suas causas e seus efeitos, que sentimos até hoje e sentiremos ainda durante muito tempo — tendo elas mesmas raízes tão longas na História.
Talvez por isso use a palavra “guerra” com certa moderação. Apesar de significar incontáveis tipos de luta, uma guerra ainda é, para mim, um conflito entre nações, entre etnias ou partidos políticos — uma ocorrência bem definida, que opõe grupos nitidamente diferenciados, aliados aqui, inimigos ali, com objetivos e ideologias distintos, cujas datas de começo e fim podem ser, pelo menos em linhas gerais, marcadas no calendário.
Mas que outra palavra descreve o que estamos vivendo hoje no Rio?
Crianças baleadas nas escolas, mãe e filha abatidas no meio da rua, um porteiro atingido por uma granada, um bebê alvejado na barriga da mãe, homens e mulheres mortos por assaltantes ou por policiais, policiais mortos às dezenas, jovens pobres mortos às dúzias, mortos mortos mortos.
Em qualquer lugar que se proclame em paz, todo esse sangue derramado causaria uma crise nacional, com demissão e renúncia de autoridades, processos, investigações. Aqui, como em outras cidades sitiadas, as notícias caem como pedras na água, traçam alguns breves círculos de comoção e pronto, nunca mais se fala no assunto. Não há espaço, nem físico nem emocional, para discutir tantas tragédias; o cotidiano as absorve rapidamente, uma após a outra.
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Nas redes sociais, sucedem-se relatos: a moça que estava fazendo compras quando um arrastão invadiu a loja, a família que saiu do shopping e não encontrou o carro, pessoas que tiveram os celulares roubados e pedem que os amigos mandem novamente os contatos.Ninguém se dá mais ao trabalho de notificar assaltos em que não perde documentos: para quê? Mesmo assim, apenas em maio, de acordo com estatísticas divulgadas na semana passada pelo ISP, foram registrados 23.213 deles. São quase 800 por dia. Pela lógica perversa com a qual nos acostumamos, 800 pessoas que, apesar de tudo, respiraram aliviadas quando chegaram em casa porque, afinal, escaparam com vida.
Há alguns dias, bandidos renderam a empregada de um apartamento aqui perto e passaram a noite aterrorizando moradores do prédio. No Jardim Oceânico, já são seis invasões em um mês. Como ninguém morreu, a vida segue, pequenas notinhas registrando horas de pavor e traumas para todo o sempre.
Não há mais autoridades responsáveis. Não há mais autoridades. O prefeito viaja como se estivesse à frente de uma ilha de tranquilidade, o governador jogou a bola como se a sua consciência estivesse em paz e ele não tivesse nada a ver com a deterioração do estado. Não estão nem aí. Querem apenas o seu naco de poder, os seus carguinhos e as suas verbas, a sua parcela do nosso suor.
Os funcionários não recebem e, é claro, não pagam. As lojas quebram, os restaurantes fecham, os apartamentos ficam vazios com placas de “Vende-se” e “Aluga-se” desbotando nas janelas. Ninguém se dá mais ao trabalho de limpar ou de repintar as paredes pichadas, consertar as calçadas esburacadas ou os equipamentos quebrados.
A cidade segue seu rumo pela Lei da Inércia, sem dinheiro, sem projeto, sem futuro.
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Não consigo definir Sérgio Cabral.
Há corrupção, e há Sérgio Cabral.
Há canalhas, e há Sérgio Cabral.
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Chega, Temer.
Vaza.
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O Brasil já foi mais bonito e inocente. Há vestígios disso por toda a parte, mas recomendo muito a exposição do comovente trabalho de Chichico Alkmim, que pode ser vista no Instituto Moreira Salles. Chichico, que nasceu em 1886 e morreu em 1978, fotografou a cidade e o povo de Diamantina entre o começo e a metade do século passado. Seus retratos, realizados com visível afeto e com extraordinário rigor técnico, são especialmente tocantes. Os brasileiros que nos contemplam dessas antigas fotografias são aqueles de que falava Drummond quando descrevia a Minas Gerais da sua infância, os mesmos que povoam “Minha vida de menina”, de Helena Morley. São dignos e reservados, e estão conscientes da importância do momento, para o qual se arrumaram com esmero e puseram as suas roupas de domingo.
O catálogo da exposição, já nas livrarias, com excelentes textos de Eucanaã Ferraz, Pedro Karp Vasquez e Dayse Lúcide Silva Santos, é um daqueles livros que nos reconciliam com o país.
Cora Rónai
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