terça-feira, 27 de junho de 2017

Meu filho não é um boi

‘A questão essencial não é que estejamos sendo vigiados, é como chegamos a este ponto, ou seja, como se organizou uma imensa e poderosa rede de espionagem, sem que isto fosse debatido e decidido pelos cidadãos”.

A frase é de Edward Snowden, e toca num ponto chave da crise atual pao é um boior que passam em todo o mundo os regimes democráticos, a saber, instituições estatais, com amplo raio de ação, desempenhando atividades que envolvem múltiplos interesses, financiadas com dinheiro público, operam sem nenhum controle social.

Não se poderia dizer o mesmo em relação ao envolvimento decisivo de grandes empresas nas campanhas eleitorais e no processo de elaboração e de definição das leis que regem a sociedade? Este é um assunto que tem merecido a atenção do professor Larry Lessig, que dirige um centro de estudos sobre a corrupção, na Universidade de Harvard, e que mostra como a agenda dos debates é orientada e condicionada pelos interesses de grandes corporações econômicas. Assim, temas e questões que entram em choque com estes interesses são colocados à margem, seus defensores detratados como “irrealistas”, “lunáticos”, ameaças à ordem instituída. Não se trata apenas de denunciar a “compra” ou a “venda” de parlamentares ou de votações específicas, embora tais procedimentos se tornem quase comuns e sejam, em si mesmos, fatores de distorção do jogo político. Estamos diante de algo mais complexo, de fixar o que se deve ou não debater, de estabelecer a agenda em torno da qual deve se concentrar a atenção da opinião pública. Nesta ordem de ideias, a corrupção de alguns, ou da maioria dos políticos, seria apenas o varejo de um processo de corrupção no atacado, maior e mais amplo, do próprio sistema institucional.

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Birgitta Jónsdóttir, poeta e política, fundadora do Partido Pirata na Islândia, adiciona uma outra questão, que teria jogado um papel importante nas últimas eleições islandesas — o medo. No mundo globalizado, onde impera a livre circulação de capitais, a ameaça de uma súbita e maciça fuga de capitais amedrontaria e inibiria tendências favoráveis a mudanças no sentido da contenção do poder econômico. Frente ao espantalho da crise, da instabilidade e do desemprego, as opções por um voto conservador tenderiam a se fortalecer.

Larry Lessig e Birgitta Jónsdóttir reuniram-se, em Moscou, com Edward Snowden para discutir os dilemas da democracia, por toda a parte ameaçada e fragilizada. Nos Estados Unidos, desrespeitando o voto universal, validado por um colégio eleitoral e antidemocrático, emergiu a inquietante — e despótica — figura de Donald Trump. Na Rússia, o governo de Vladimir Putin, embora legitimado por eleições, toma um rumo autoritário nítido, amparado por um nacionalismo exacerbado. Na China, o Partido Comunista mantém sob rédeas ditatoriais a população. No mundo árabe, declinou o impulso da “primavera” que suscitara tantas esperanças. Em seu lugar, desagregação, guerras civis, novas ditaduras. Até na Europa, onde pareciam sólidas as bases do Estado de bem-estar social, é notória, em vários países, a ascensão de partidos de extrema-direita. Mesmo ali onde estas forças são derrotadas, é perturbador o desapreço de expressivos segmentos do povo em relação ao regime eleitoral. Nas recentes eleições francesas este fato evidenciou-se mais uma vez. No segundo turno das eleições parlamentares, quase 58% dos eleitores inscritos não se deram ao trabalho de ir votar. Uma tendência histórica, flagrada desde os anos 1970 e 1980, quando o comparecimento às urnas alcançava com frequência a marca de 80%. De lá para cá, só aumentaram o descrédito e a desconfiança, sobretudo entre os jovens e as camadas populares, em relação à mal chamada “classe política”. Na América Latina, como sabemos, a situação não é nada melhor. No Brasil, em especial, a distância entre a aristocracia do poder, cevada a mordomias e protegida pelo repugnante foro privilegiado, e as pessoas comuns não cessa de aumentar, desmoralizando, cada vez mais, as instituições.

Timothy Snyder, da Universidade de Yale, estudioso do nazismo e do stalinismo, emite sinais de alerta ao identificar na situação atual semelhanças com a que o mundo viveu entre as guerras mundiais, quando os regimes autoritários e ditatoriais surgiram como alternativas para gentes desesperançadas, temerosas e descrentes.

É neste panorama desalentador que se torna significativa a traumática experiência do garoto que, em São Bernardo, foi torturado e tatuado na testa com uma frase infamante. Como observou José de Souza Martins, no berço das lutas democráticas brasileiras, a tortura perpetrada por elementos populares. Um sinal da força do autoritarismo nas bases da sociedade? A mãe da vítima protestou: “Meu filho não é um boi”. Resta saber se não estaremos virando, todos, uma grande boiada, a caminho do matadouro de novas ditaduras.

Daniel Aarão Reis

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