terça-feira, 27 de junho de 2017

A Lava Jato como purgação e maldição

Se a crise da democracia e da política é um fenômeno global, é preciso compreender o que há de particular na experiência hoje vivida pelo Brasil. Minha hipótese é de que as raízes da nossa atual crise estão no próprio processo de retomada da democracia após 21 anos de ditadura civil-militar. As raízes da nossa crise estão no apagamento dos crimes da ditadura e na impunidade dos torturadores. O Brasil retomou a democracia sem lidar com os mortos e os desaparecidos do período de exceção. Seguiu adiante sem lidar com o trauma. Um país que para retomar a democracia precisa esconder os esqueletos no armário é um país com uma democracia deformada. E uma democracia deformada está aberta a mais deformações. O que se infiltra no imaginário da população é que a vida humana vale pouco qualquer que seja o regime. E este não é um dado qualquer na atual crise.

É neste sentido o uso das palavras “purgação” e “maldição” do título deste artigo para se referir aos significados da Lava Jato. Se a operação é importante e é imperativo que ela continue, porque expõe a relação estabelecida entre governos, partidos e parte do empresariado nacional, a Lava Jato também revela, pelo seu avesso, o pacto do diabo que resultou na alma deformada da nossa democracia. A grande purgação nacional não é pela vida humana, mas pelo dinheiro. Não é pela carne, mas pela matéria inanimada. Quando finalmente combatemos a impunidade, o que nos mobiliza são os bens materiais, enquanto a vida segue sendo ferida de morte.
Imagem relacionadaA maldição da Lava Jato é a de reforçar, como efeito colateral, a natureza da deformação de nossa democracia

O impacto da Lava Jato sobre a República que agora afunda possivelmente seria outro se antes dela houvesse existido investigação, julgamento e punição dos crimes contra a vida humana praticados pelo Estado durante a ditadura. Como em vez disso houve apagamento e impunidade, a maldição da Lava Jato é a de reforçar, como efeito colateral, a natureza de nossa deformação. E sobre isso não há responsabilidade dos agentes da operação, mas sim uma responsabilidade coletiva do povo brasileiro e uma responsabilidade consideravelmente maior das elites que conduziram e disputaram o processo de transição da ditadura para a democracia e o poder no que se chamou de Nova República.

Não vou me deter aqui nos meandros desta escolha pela conciliação com o inconciliável – e pelo apagamento. Apenas registrar que tanto a Comissão da Verdade quanto a ação que questionava a aplicação da Lei de Anistia para torturadores do regime foram oportunidades recentes de mudar esse rumo. A Comissão da Verdade pouco mobilizou a população. E o Supremo Tribunal Federal decidiu não rever a Lei de Anistia.

Um dos dois votos favoráveis ao pedido de revisão da Lei de Anistia proposto pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi do ministro Carlos Ayres Britto. Ele afirmou, em 2010: “Um torturador não comete crime político. Um torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado. Um torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso sofrimento alheio perpetrado por ele. É uma espécie de cascavel de ferocidade tal que morde ao som dos próprios chocalhos. Não se pode ter condescendência com torturador. A humanidade tem o dever de odiar seus ofensores porque o perdão coletivo é falta de memória e de vergonha”.

A cena pornográfica que sintetiza a deformação da democracia brasileira é o discurso do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT) na Câmara: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff”. Em uma frase só, no centro da democracia que é o parlamento, o militar da reserva homenageava um torturador e assassino – e gozava com a tortura da presidente legitimamente eleita, cujo afastamento era ali decidido. Ainda que esta cena de real pornografia tenha sido apontada dentro e fora do Brasil, o fato de ela não ter produzido um horror absoluto e disseminado é apenas mais um sintoma de nossa deformação.


Também é bastante claro que a escolha pela conciliação e pelo apagamento dos crimes da ditadura, para além das circunstâncias do momento, tem raízes históricas mais longas e profundas. Ela vai se encontrar lá atrás com as razões pelas quais o Brasil foi o último país da América a abolir oficialmente a escravidão negra. E está na própria formação do que se chama de Brasil. Há bibliografia de qualidade sobre isso e muitas linhas de investigação ainda a serem seguidas.

Aqui, o objetivo é trazer para o debate da atual crise os significados deste apagamento. E os riscos de seguirmos pactuando novos apagamentos. E, portanto, girando em falso. Cada vez torna-se mais evidente que não só apagar, mas contornar as contradições em vez de enfrentá-las, só nos leva cada vez mais para o fundo do poço sem fundo.

Quando um país vive uma experiência como uma ditadura, em que o Estado sequestrou, torturou e executou cidadãos, é preciso elaborar o que se viveu e fazer marca do vivido. Num país, isso se faz com investigação dos crimes, julgamento e punição dos responsáveis, promovendo memória, debate e reflexão. É assim que se estabelece no imaginário da população que tortura e assassinato não serão tolerados – e que o cidadão pode contar com a justiça numa democracia. É também isso que empresta valor ao regime democrático – e que aponta a sua diferença para uma tirania.

Essa ideia pode se tornar mais clara quando se observa o exemplo de um crime contra a humanidade que está no imaginário de todos. Quem vai a Berlim ou a outras cidades alemãs, pode contar com um itinerário de monumentos e museus que mantém viva a memória do Holocausto e do extermínio de seis milhões de judeus, ciganos, homossexuais e pessoas com algum tipo de deficiência. Cada alemão que nasce hoje, mais de 70 anos depois do final da Segunda Guerra, sabe que esse horror aconteceu ao dar seus primeiros passos na rua e topar com os monumentos. E vai precisar pensar sobre isso, porque é também este o legado de ser alemão. Ser alemão é estar num dos países com melhor qualidade de vida da Europa e é também compartilhar desta memória. Responsabilidade é isso: não se pode pegar só uma parte do pacote.

Não se vai a futuro nenhum negando o passado. É também para isso que se faz marca do vivido. Marcas no julgamento dos criminosos, marcas no ensino dentro das escolas e no debate em todos os espaços, marcas físicas, como o Memorial do Holocausto no coração de Berlim. A céu aberto e ocupando 19 mil metros quadrados de área nobre, bem perto do Portão de Brandemburgo, a escultura nos desestabiliza com a força de seus 2.711 blocos de concreto de diferentes tamanhos, projetada para produzir o sentimento perturbador causado por “um sistema supostamente ordenado que perdeu o contato com a razão humana”.

O objetivo de fazer marca do vivido não é promover penitência ou versões de punição bíblica. Não é de culpa que se trata. E sim de responsabilidade coletiva. As marcas servem exatamente para evitar a repetição.
Leia mais o artigo de Eliane Brum

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