Lula foi desmascarado uma centena de vezes. A única vez que se sentiu envergonhado e desconcertado foi na primeira aparição pública para explicar o “mensalão”, há mais de uma década. Pessoas que estão hoje dirigindo empresas ou fazendo seu doutorado ou dando duro para sustentar família eram garotos nessa época, não se lembram ou nem viram isso. Dez anos no Brasil conta muito. Lula na frente das câmeras, nesse episódio, mesmo em programa preparado pelo PT, fazia movimentos com os olhos um tanto esquisitos, e em determinado momento surgiu o branco nos olhos, em um estranho sumiço da menina do globo ocular, como ocorre em certas mulheres na hora do gozo. Mas se na mulher isso significa prazer, em Lula foi a tentativa de buscar ausência de dor. Lula estava já acostumado a mentir, mas a partir de uma invenção adrede preparada, não em cima de acusação tão evidente e voltada diretamente contra ele. Foi um fiasco. Boris Casoy foi o único jornalista que comentou aquele “estranho movimento dos olhos”.
Desde aquela época até hoje, mantenho a minha tese de que Lula não criou o sistema de propina das empresas e demais corrupções. Ele herdou a prática e a implementou por meio de Zé Dirceu e Palloci, estes sim os cabeças da coisa toda. Lula jamais teve competência e gosto por cálculos. Dirceu se envolveu nisso por considerar que a “democracia burguesa” não é democracia e que a legalidade que vivemos não é legal. Palocci se envolveu nisso porque já estava “escolado”, a partir das falcatruas da prefeitura de Ribeirão Preto, que comandou. O PT tratou de ficar quieto, claro.
A maior parte dos senadores, deputados, prefeitos e vereadores não conseguiram dizer não ao dinheiro que fez do Partido dos Trabalhadores uma máquina eleitoral de grande porte. O PT passou rapidamente a ser quem mais gastava em campanha, oficialmente, contra todos os partidos “dos ricos”, “das elites” ou “da burguesia”.
Quando Lula teve que se defender na TV ele já estava imerso até o pescoço nessa lama toda, e o PT já nem mais pensava em sobreviver sem a corrupção. Junto com isso, veio o sucesso do “milagre brasileiro”, o semi-repeteco do que ocorreu na Ditadura Militar: pessoas que não podiam comprar, começaram a comprar. E isso significa, não raro, em lugar pobre, uma boa anestesia na consciência crítica.
Lula foi premiado internacionalmente. Deu palestras reais e deu palestras fictícias. Gostou da ficção. E começou a dizer que iria provar que o “mensalão” não havia existido. Fora na TV se desculpar, e então, passado um tempo, esqueceu essa desculpa e resolveu reescrever sua biografia, quase que desafiando a Justiça no sentido de dizer que Zé Dirceu estava preso injustamente. A militância cega do partido acreditou. Precisa acreditar para continuar a ser a militância do PT.
Os eleitores, diante do “perigo Aécio” (o “playboy da cocaína”), retornaram a pôr alguma última fé no partido e deram um voto de confiança a Lula: escolheram Dilma. Aécio perdeu até para os votos nulos e brancos.
Dilma foi um desastre. Mas o desastre já vinha de antes. E a corrupção dos governos Lula e Dilma juntos deram ao Brasil o último lugar na relação entre impostos e benefícios. Veio a crise econômica, o Impeachment de Dilma, e enfim o terremoto da Lava Jato sobre o PT e outros partidos, inclusive o PSDB que, claro, nunca foi santo. O Lula de agora, acuado, resolveu pegar o único caminho existente: torcer para que as provas diretas contra ele não sejam tangíveis e fazer com quer a militância cega se insurja contra a Lava Jato.
Lula se tornou um mentiroso para si mesmo de modo aperfeiçoado, que é o segredo de Polichinelo que todo bom mentiroso tem na manga. Para mentir bem é necessário mentir bem para si mesmo. É necessário anular o enrubescer. É preciso mandar para o cemitério as bochechas que coram ou então beber para se manter sempre vermelho, bem corado!
Até aí o que falei é da política. A filosofia entra agora. O “conhece-te a ti mesmo” é délfico. Sócrates o adotou. Mas Sócrates criou também o lema complementar: “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Com esses dois lemas, passou a filosofar. Só que o exame do eu jamais foi feito por Sócrates como o exame do eu d estilo moderno e contemporâneo, que aprendemos com a introspecção cartesiana e, posteriormente, com a análise freudiana. Sócrates não trabalhava com a ideia de uma consciência cristalina e transparente, do eu investigando o self, ou com uma consciência acoplada a uma subconsciência, que se revela nos tropeços da linguagem.
Sócrates não foi um antecessor de Descartes e nem Freud. Sócrates trabalhava com a ideia de um “duplo” ou, como costumava explicar Hannah Arendt, um “dois em um”. Ou seja, o outro de Sócrates se compunha também na primeira pessoa, e assim era investigado. Investigar a si mesmo era ter de conversar consigo mesmo sem a noção de self, mas com a noção de ter junto de si um eu com poder de surpresa, independente, também seguidor das boas regras da lógica. Sócrates chegava a dizer desse outro que era um parente seu, um primo rude, tosco, que morava na sua casa, e que precisava das coisas muito bem explicadas para entender – um chato!
Com isso em mãos, Sócrates criou o seu “intelectualismo”. A moral depende do intelecto. A doutrina socrática: ninguém faz o mal pelo mal, ninguém opta pelo erro, mas se o mal ou o erro ocorrem, é por conta da ignorância do agente. Essa doutrina então concluiu: se faço o mal, ele é algo pior para mim do que para quem é atingido por ele. Se sou um assassino, quem mais sofre sou eu, pois tenho que dormir com esse assassino, e pior ainda, tenho de ficar angustiado por conta de que esse assassino é culpado mesmo e pode ser pego pela lei.
Se olharmos Lula com esse instrumento antigo, sem as sofisticações de Descartes e Freud, podemos entendê-lo talvez melhor do que ele próprio se entende. Lula está desesperadamente tentando anular esse outro do “dois em um”, que se manifestou quando do início do “mensalão”.
Ele está tentando se unificar em um só eu, o Lula que não erra, que governou com dez mil corruptos sem ser um deles, o Lula que deu um prato de comida para o pobre e por isso é perseguido não mais pelas elites, mas por um grupo de procuradores da Justiça, o Lula que agora é viúvo e sofre, o Lula que precisa salvar o PT, o Lula de oposição que é capaz de dizer que há uma crise e que ela não é dele e sim de Temer. Esse Lula pode voltar à cena.
Não mente para si mesmo, pois anulou de vez o self, o outro, o bandido que estava dormindo com ele. Lula perdeu o “dois em um” ou, como dizemos na psicologia popular, “perdeu a consciência”, perdeu a vergonha. A vergonha é o olhar do alter-ego sobre o ego. Mas o alter-ego de Lula está com um travesseiro na boca, no rosto, sufocado para todo o sempre.
Lula está de tal modo unificado solitariamente que se mostrarem para ele uma foto com os nove dedos dele no cofre alheio ele será capaz de dizer, de modo sincero (sim, sincero, eu disse), que ele não estava ali pegando dinheiro, mas pondo, fazendo uma doação para algum destino nobre. Lula não tem mais aquele primo chato morando com ele, como Sócrates disse ter.
Afinal, Lula é o homem que disse que se soubesse que a Odebrecht era corrupta, ele jamais teria feito uma palestra para ela, no exterior. Ora, mas Lula não é mais o nosso grande problema. Nosso problema é que nós ainda estamos procurando outro Lula. O chamado Lula apolítico – como era o tal Lula de 1982.
Sócrates não foi um antecessor de Descartes e nem Freud. Sócrates trabalhava com a ideia de um “duplo” ou, como costumava explicar Hannah Arendt, um “dois em um”. Ou seja, o outro de Sócrates se compunha também na primeira pessoa, e assim era investigado. Investigar a si mesmo era ter de conversar consigo mesmo sem a noção de self, mas com a noção de ter junto de si um eu com poder de surpresa, independente, também seguidor das boas regras da lógica. Sócrates chegava a dizer desse outro que era um parente seu, um primo rude, tosco, que morava na sua casa, e que precisava das coisas muito bem explicadas para entender – um chato!
Com isso em mãos, Sócrates criou o seu “intelectualismo”. A moral depende do intelecto. A doutrina socrática: ninguém faz o mal pelo mal, ninguém opta pelo erro, mas se o mal ou o erro ocorrem, é por conta da ignorância do agente. Essa doutrina então concluiu: se faço o mal, ele é algo pior para mim do que para quem é atingido por ele. Se sou um assassino, quem mais sofre sou eu, pois tenho que dormir com esse assassino, e pior ainda, tenho de ficar angustiado por conta de que esse assassino é culpado mesmo e pode ser pego pela lei.
Se olharmos Lula com esse instrumento antigo, sem as sofisticações de Descartes e Freud, podemos entendê-lo talvez melhor do que ele próprio se entende. Lula está desesperadamente tentando anular esse outro do “dois em um”, que se manifestou quando do início do “mensalão”.
Ele está tentando se unificar em um só eu, o Lula que não erra, que governou com dez mil corruptos sem ser um deles, o Lula que deu um prato de comida para o pobre e por isso é perseguido não mais pelas elites, mas por um grupo de procuradores da Justiça, o Lula que agora é viúvo e sofre, o Lula que precisa salvar o PT, o Lula de oposição que é capaz de dizer que há uma crise e que ela não é dele e sim de Temer. Esse Lula pode voltar à cena.
Não mente para si mesmo, pois anulou de vez o self, o outro, o bandido que estava dormindo com ele. Lula perdeu o “dois em um” ou, como dizemos na psicologia popular, “perdeu a consciência”, perdeu a vergonha. A vergonha é o olhar do alter-ego sobre o ego. Mas o alter-ego de Lula está com um travesseiro na boca, no rosto, sufocado para todo o sempre.
Lula está de tal modo unificado solitariamente que se mostrarem para ele uma foto com os nove dedos dele no cofre alheio ele será capaz de dizer, de modo sincero (sim, sincero, eu disse), que ele não estava ali pegando dinheiro, mas pondo, fazendo uma doação para algum destino nobre. Lula não tem mais aquele primo chato morando com ele, como Sócrates disse ter.
Afinal, Lula é o homem que disse que se soubesse que a Odebrecht era corrupta, ele jamais teria feito uma palestra para ela, no exterior. Ora, mas Lula não é mais o nosso grande problema. Nosso problema é que nós ainda estamos procurando outro Lula. O chamado Lula apolítico – como era o tal Lula de 1982.
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