segunda-feira, 8 de maio de 2017

A luta por terras e resgate da memória dos gamela, apagada desde o Brasil colônia

Por volta das 16h do último domingo, 30 de abril, uma batalha campal se iniciava em Viana, município de 50.000 habitantes a pouco mais de 200 quilômetros da capital maranhense, São Luís. Em uma região em que quatro de cada dez pessoas é pobre, começava ali uma luta violenta de quem tem pouco contra quem tem quase nada. De um lado estavam indígenas da etnia gamela, que ocupavam uma área que reivindicam pertencer a seus ancestrais, expulsos dali no passado. Do outro, agricultores, alguns donos de uma quantia de gado possível de se contar nos dedos, que pretendem manter seu pedaço de chão para poder plantar. O enfrentamento deixou dezenas de feridos, vários deles com marcas de bala rasgadas pelo corpo. Quatro ainda estão internados em hospitais da capital. Dois indígenas tiveram as mãos quase arrancadas a golpes de facão, em uma cena que lembrou a alguns o tratamento dado, por vezes, a animais que ignoram cercas e entram em terra vizinha. Na pequena cidade, as imagens da barbárie ainda atormentam a população.

Naquele 30 de abril chegava ao ápice uma "tragédia anunciada", conforme descrevem pessoas de ambos os lados. Era o clímax de um conflito que se agrava há mais de um ano, sem que as autoridades agissem para evitá-lo. No final de 2015, os gamela decidiram iniciar no município uma onda de "retomadas", expressão usada pelos indígenas para definir a ocupação de um território ancestral retirado de seus parentes no passado. E, desde então, já ocuparam oito áreas onde antes existiam habitações de não-índios, incluindo a de um político local e a de uma juíza, contam eles.


Encomendado pelo Ministério do Interior em 1967, o Relatório Figueiredo, com mais de 7 mil páginas, produzido pelo Procurador Jader de Figueiredo Correia, é um documento condenatório do genocídio indígena no país. Entre os documentos está a foto da mãe da tribo Cinta Larga, que teve o filho assassinado com tiro na cabeça e depois cortada ao meio (Fonte: Metamorfose Digital)


Naquele domingo, fariam a nona. Pouco depois da hora do almoço chegaram em certa de 30 pessoas ao sítio Ares Pinto, uma área de 22 hectares (cerca de 22 campos de futebol) no povoado Bahia. Entraram no local onde encontraram a mulher do caseiro Carlos Augusto Pinto do Nascimento. Ao mesmo tempo, a cerca de quatro quilômetros dali acontecia um evento intitulado "Marcha pela Paz", em que, segundo os organizadores, cerca de 5.000 proprietários de terras de Viana, Penalva e Matinha, municípios vizinhos com áreas reivindicadas pelos indígenas, discutiam a situação das retomadas indígenas na região, com a presença do deputado federal Aluísio Mendes (PTN), que em uma entrevista em uma rádio, dias antes, chamou os gamela de "pseudo-índios".

Nascimento, o caseiro da terra ocupada pelos índios naquele domingo, conta ter saído para comprar farinha pouco antes do ocorrido. Quando voltou para o sítio e percebeu que os gamela haviam tomado a propriedade, pegou sua moto e foi até a reunião, onde a viatura da Polícia Militar da cidade estava estacionada. Aos berros, avisou à multidão, já de ânimos exaltados pelas falas inflamadas, que sua mulher se tornara "refém" dos gamela, algo que os índios negam. Os policiais entraram no carro e se dirigiram até o local, mas foram embora logo depois, quando perceberam que a turba enfurecida, decidida a fazer justiça com as próprias mãos, chegava ao local em dezenas de motos e carros. Segundo o tenente-coronel, José Maria Aires Neto, os PMs tiveram de sair para buscar reforço, já que não havia sinal para a chamada naquela região, mas voltaram apenas quando a desgraça já estava feita e entraram na área da mata com suas lanternas, em busca de possíveis corpos, conta o caseiro. "Você já viu uma multidão enfurecida? Quatro policiais não conseguem evitar isso. De jeito nenhum", diz o comandante.

Aldeli de Jesus Ribeiro, que teve as mãos quase arrancadas a golpes de facão.
Aldeli de Jesus Ribeiro, que teve as mãos
quase arrancadas a golpes de facão
Os gamela acusam os não-índios de terem orquestrado um ataque. "Não foi um confronto o que aconteceu. Foi um massacre. Quem somos nós, com flechas, para confrontar armas de fogo?", afirma Francisco Gamela, de 60 anos. Mas também são acusados pelo outro lado de atirar contra eles com armas de fogo. Em uma família de agricultores, três parentes foram baleados. Segundo a família, por armamentos do índios. Segundo os gamela, por armamentos dos não-índios, durante a confusão generalizada. Um deles, Domingos Gomes Rabelo, ainda se encontra no hospital e corre o risco de perder os movimentos de uma das mãos, conta a mulher, Margarete de Jesus. "Meu marido estava na reunião e foi até lá porque conhecia esses que se dizem índios. Ele tentou negociar quando foi atacado. Juntaram e encheram ele de paulada. Ele levou tiros nas mãos e nas pernas. Meu filho foi ajudar e também foi agredido. Depois aconteceu o mesmo com o irmão do meu marido."

Na cidade, diante das investigações e da repercussão do caso, é difícil achar quem afirme ter participado do fato. Em uma versão corroborada pelo caseiro, durante a confusão um grupo de não-índios cercou ainda dois gamela já caídos após terem sido alvejados por tiros. Foi nessa hora que, após uma bala atingir suas costas, Aldeli de Jesus Ribeiro foi atacado nos dois braços pelos golpes de facão. Uma foto registrou o estado de seus membros: totalmente abertos e ensanguentados. Ele está hoje na cama de um hospital, com ferros nos dois punhos e em uma das pernas, também dilacerada. Está acompanhado por José Ribamar Mendes, que também acabou com cortes profundos na mão direita, e por José André Ribeiro, que levou pauladas na cabeça e um tiro no peito. Uma parente que os acompanha no hospital, em São Luís, e pediu para ter a identidade preservada, afirma que Aldeli disse ter se fingido de morto para que as agressões cessassem. "Ele diz que gritavam: deixa esse desgraçado que eu vou matar e botar fogo." Na confusão, os outros índios correram e atravessaram uma mata fechada, que separa a propriedade que eles pretendiam retomar de uma área já retomada por eles em 2015. Muitos ainda mancam devido às feridas causadas pelos espinhos e os troncos com que toparam no caminho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário