segunda-feira, 10 de abril de 2017

Conhecimento sem cortes

No fim de março, o orçamento para ciência e tecnologia foi reduzido pela metade. Mais um ato governamental justificado pela necessidade de cobrir o rombo do déficit público e, na sequência, retomar a confiança dos investidores. Contudo, confiança tem interpretações diversas. A persistência da recessão, desemprego, aumento da violência e redução da renda, bem expressos na estagnação do Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil, lançam suspeitas sobre a credibilidade das políticas públicas. E as desconfianças não param por aí. O maltrato da ciência nacional dissemina imagens muito negativas do país. Uma das principais revistas científicas do mundo, a “Nature”, advertiu sobre as consequências das restrições de recursos para ciência e tecnologia: abandono de programas de intercâmbio, diminuição do número de trabalhos publicados e perigos de descontinuidade de um grande projeto como o Sirius Síncroton, acelerador de partículas, que viabiliza a participação brasileira em diversos esforços para inovação, inclusive na saúde.



Procedimentos para granjear confiança de uns motivam descrença para outros. Essa polarização deveria ser debatida. No entanto, as divergências vêm sendo canceladas, substituídas por uma explicação que serve para quase tudo. O mundo seria habitado por indivíduos movidos somente pela razão instrumental, portanto os poupadores e empresários buscam retornos financeiros no curto prazo, e os cientistas se agarram com unhas e dentes a seus privilegiados empregos públicos. Sob uma versão mais favorável, os mesmos personagens podem ser retratados como seres conscientes dos perigos de um calote, defensores da ordem e espécimes ingênuos, incapazes de competir e enxergar a realidade. Sem levar em conta os valores morais e éticos, a autonomia de decisão de agentes sociais e a necessidade de processos democráticos de negociação, o problema fica restrito a uma briga entre quem manda e quem obedece, ou entre realistas e sonhadores.

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Como as escolhas sociais não são direcionadas apenas pela lógica economicista, em governos anteriores as políticas de ciência e tecnologia foram, com mais ou menos empenho, preservadas. A maré favorável dos anos 2010 e a existência de universidades e institutos de pesquisa que produzem conhecimentos projetaram a ciência brasileira a postos de destaque, tanto em termos quantitativos como qualitativos. Apesar de o número de pesquisadores brasileiros e os gastos com ciência e tecnologia serem muito inferiores aos de países desenvolvidos (710 por milhão e 1,2% do PIB, contrastando com 7.600 por milhão e 2,4% em média dos integrantes da OCDE), houve grande expansão do número de mestres e doutores e de artigos publicados. A outorga da medalha Fields — uma espécie de Nobel da matemática para Artur Ávila, do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, e do Prêmio Gairdner, um dos mais respeitados na área na saúde, para Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas, demonstram a excelência de pesquisas desenvolvidas em instituições nacionais.

Opor ciência à racionalidade fiscal não é novidade. Materiais bibliográficos sobre Sir William Gladstone, chanceler do tesouro na primeira metade do século XIX, registram a recepção desfavorável aos esforços de Michael Faraday para explicar a geração de corrente elétrica. O dialogo entre os dois teria sido breve. “Afinal, para que serve?” “Há toda a probabilidade de que em breve você poderá tributar.” Ao longo do tempo, os cientistas se posicionaram politicamente: fazer ciência para “aliviar a fadiga humana", estimular a [e?] promover a justiça social, distribuir as conquistas da ciência, estimular a incorporação da investigação nas escolas e na formação de professores, ou contribuir para acumular riquezas e concentrar poder e conhecimento? As ameaças objetivas ao desenvolvimento econômico e social nas próximas décadas suscitam estranheza. Será que as autoridades responsáveis por passar a tesoura nos recursos para ciência e tecnologia compreendem a relevância da área para o futuro do Brasil? Estão convictas de que a privatização é a alternativa para toda e qualquer atividade de coletividades humanas?

É comum que economistas ao lamentar, mas impor, os cortes de recursos para as políticas sociais recorram a analogias relativas a doenças para não deixar dúvidas sobre a gravidade do déficit. A economia está no CTI, o paciente está em coma são expressões usuais. Sem dúvida, situações de saúde críticas requerem monitoração e medidas terapêuticas de suporte para os riscos de falência de funções vitais. O exemplo atemoriza. Quem deixará de concordar com a necessidade de fazer todo o possível para salvar o doente (na realidade o equilíbrio fiscal)? Mas quem dará consentimento para prejudicar deliberadamente órgãos saudáveis do paciente? Metáforas cortadas ao meio não contribuem para expor com a devida clareza escolhas políticas. Discordâncias não devem ser abafadas com argumentos falsos, o reconhecimento da alteridade é condição básica para a sociabilidade. A ciência, cientistas e formulação de políticas baseadas em evidências estão sob ataque. Os cortes nos orçamentos e o desaparecimento ou sucateamento de agências governamentais especializadas em ciência e tecnologia prejudicam a saúde, a alimentação, o ar, a água, o clima e a geração de empregos. Abril é o mês da marcha mundial pela ciência, direitos à educação pública e garantias de apoio a pesquisas e tecnologias inovadoras e acessíveis.

Ligia Bahia

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