II
Na semana passada, intelectuais assinaram um manifesto pela candidatura daquele que o Ministério Público Federal apresentou (mas não prendeu!?) como o comandante máximo da organização criminosa que sequestrou o Estado e arruinou o país. A irrelevância de intelectuais desmoralizados no instante mesmo em que submetem o pensamento ao lulo-banditismo restringiu o vexame ao território onde um país ainda tenta existir. Falou-se, com razão, da precariedade moral e gramatical do texto, mas faltou perguntar àqueles signatários o que fizeram pelo conhecimento no país que não tem nenhuma universidade entre as 150 melhores do mundo. A defesa de um bandido que depreda o conhecimento, o apego a boquinhas em guildas ideológicas nas mofentas universidades públicas e tantas privadas de onde pontificam quem vive e quem morre nos meios editorial e acadêmico-cultural, a substituição da leitura/pesquisa pela burocracia universitária? O confronto foi oportuno, mas o essencial para o país não se fez ouvir no alarido.
III
Ninguém adivinharia que o duro começo de vida de mascate pelo sertão daria ao meu tio-avô o único armazém da região, o Tend Tudo; o casarão na avenida principal da encantadora cidadezinha encarapitada nas serras pernambucanas; viagens e conhecimento; estudo e ilustração; prestígio e a amizade infectada pela adulação em graus diferentes do delegado, do padre, dos políticos e dos comerciantes das redondezas; o respeito e a afeição dos demais habitantes. O custo foi desgraçado: a morte dos quatro filhos. O casal de gêmeos ainda bem novinhos foi levado por uma combinação de misericórdia divina e disenteria quando a fome e a miséria grassaram por ali numa estiagem de quase cinco anos. Dos outros dois, já adolescentes, um ataque tenebroso de uns cangaceiros deu cabo. O acontecimento gravou no espírito dos meus tios-avós tão fervoroso repúdio à violência que a brutalidade da execução de Lampião relembrou a dor pelo avesso. E eles, tão crentes meus Deus, se recolheram em jejum e preces para sobreviver àquele dia. Enquanto ela se entregaria à caridade e à adoção informal das crianças do populoso ramo pobre da família, ele entregou o coração à ideia fixa de que a morte não o surpreenderia.
IV
Há 10 dias, Marcelo Odebrecht estarreceu o país, em transe diário, revelando que entregou R$ 300 milhões de propina ao PT entre 2009 e 2014, operados por dois ministros de Estado, Palocci e Mantega – a isso a seita nefasta rebaixou a nação. Precisamente nessa redução e na incompetência dolosa dos petistas, os políticos metidos até o último voto com a ética 2 do caixa 1 e os vícios do caixa 2 se diferem daqueles que saquearam o Estado patologicamente, tecendo uma rede internacional com regimes eleitos por grana roubada e com delinquentes de colarinho branco Estado-dependentes. Igualar crimes de caixa 1-2 ao esbulho institucional da súcia lulo-petista derrotará a Lava Jato e o país, malogro para o qual contribui a gritaria estrepitosa em torno do delito menor que o agiganta até que se dilua a obra medonha do PT. E, assim, restaremos entre Guilherme Boulos e Marina Silva: é essencial lembrarmos que não há santos na política, nem fora dela.
V
Homem parrudo, de quase 2 metros, pacífico, meu tio-avô só saia de casa armado; dizia que por cautelar persuasão. Nunca disparou um tiro, mas quase matou a mulher de susto quando vieram entregar em casa o caixão. De pé ao lado da peça intrusa entre a mobília preciosa, um braço estendido ao longo do corpo miúdo enquanto a mão oposta ajeitava o cabelo curto impecável, Adalgisa perguntou com o fio de voz que o choque permitia o que diabos era aquilo, homem de Deus. Honorato contou que o melanoma se confirmara e o médico lhe dera só três meses, se tanto, para colocar a vida em ordem. A vida tem a ordem possível, doutor, eu vou é organizar a morte.
VI
MO disse também que Michel Temer lhe pediu doação para a campanha sem falarem de valores e, finalmente, que não fez doações ilegais a Aécio Neves. Tão desolador quanto o depoimento ao ministro Herman Benjamin do TSE, foi contemplar a imprensa que conta, aquela que se agigantou resistindo à censura no regime militar, apequenar-se na rendição à patrulha petista e/ou à ideologia que a intoxica e pode matar o que ainda resta de jornalismo digno da definição. Deformando o que disse MO, portais de revistas e jornais fizeram de Temer e Aécio os presidentes do Brasil da última década que o acanalharam berrando como crimes o não-crime de pedir doações e o não-crime de ter recebido doações legais. Quando surgiu a notícia de que o tucano recebera R$ 9 milhões por vias legais, esse grão de areia limpo encobriu a montanha imunda dos 300 milhões dados ao PT. A imprensa é livre para não gostar de Temer, a imprensa é livre para não gostar de quem o apoia, a imprensa é livre para querer a volta das esquerdas, a imprensa é livre para perder eleitores, a imprensa é livre. Então, por que não se liberta?
VII
Meu tio-avô pediu pressa e esmero na fabricação do caixão. Daquele dia em diante, passaria algumas horas diárias dentro do esquife para se familiarizar, pois a morte não o pegaria de surpresa. Ninguém entendeu e Adalgisa pediu à mamãe, numa carta cheia de solidão, que a sobrinha – a filha que ela não teve – estivesse com ela, mandaria as passagens de avião; que venha com as três meninas, há boa acomodação e os ares verdes farão bem a elas, visse? Fomos e, vendo a chuva oblíqua, ouvi Honorato me chamar. Não sei se pela transição entre o mundo dos mortos e o dos vivos ou se por outra ausência que já se insinuava, ele esquecera o nome da sobrinha-neta afilhada.
VIII
Claro que o tal foro privilegiado tem de ser reformulado (via Congresso, ministro Roberto Barroso), mas a discussão perde-se do essencial: a impunidade não precisa do STF para triunfar, ela tem o território inteiro onde deveria haver um país. Não? Vejamos. O ex-goleiro Bruno foi solto porque a Justiça demorou cinco anos para não julgar um recurso; Pimenta Neves, o ex-diretor do Estadão que assassinou com dois tiros pelas costas a namorada diante de testemunhas, ficou 11 anos solto até ser preso por 7 meses e reconquistar a liberdade; o Mapa da Violência informa que míseros 8 de cada 100 assassinatos são levados a julgamento no Brasil. Tudo isso fora dos salões privilegiados do STF. Tudo isso num país com 140 mil servidores num Judiciário pesado de mordomias e incúria; com uma polícia que, obsoleta e mal paga, pouco investiga. O foro privilegiado é um privilégio de ricos (com seus advogados que protelam tudo) e de pobres (com a incompetência do Estado que protela tudo). É o privilégio do crime, especialmente do crime contra a vida, essa coisa sem valor nem serventia num país de trágicos privilégios impunes.
IX
Bela a tempestade de um mês atrás como espetáculo, com o granizo se granulando escandalosamente na pequena varanda de onde eu assistia a tudo. Voltava de uma visita aos meus amados Adalgisa e Honorato que se mudaram para São Paulo desde que o mal de Alzheimer se agravou e vi os olhos azuis-acinzentados vazios sem a sentinela que vigiava a morte. O melanoma não o levou, mas Honorato já não estava mais ali. No começo, a chuva era oblíqua e me lembrei do poema do Pessoa “Chuva Oblíqua”: “Não sei quem me sonho…”.
Depois, o peso de tanta água corrigiu o ângulo e o aguaceiro se endireitou e se adensou tão completamente que apagou a paisagem clara minutos antes, transformando-se no mundo. Não tem mais mundo, só tem a tempestade e este camarote meu, tão precário que me faz pensar em quem não conta nem com um assim e em quem, dispondo de abrigo muito mais bem protegido, grita repreendendo chuvas e ventos como se todo o espetáculo não tivesse sido preparado na anterior calmaria aparente. Gritando, só ouvem a si mesmos, e não o essencial.
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