“Dos cinco professores examinadores - continuou -, o dr. Sinfrônio Frazão era durão. Criticava todo mundo, mas não conseguia escrever uma linha. Seu sadismo não permitia que ele distinguisse examinar de humilhar. Era um materialista radical capaz de reprovar o que achava, mesmo sem saber, ser um trabalho simbolista, culturalista ou idealista. Na banca, estava também a professora doutora Paulina Pavão, uma poliglota que sabia tudo, menos sair de si mesma. Os outros examinadores eram normais. Incapazes de matar uma mosca, como diziam abertamente Sinfrônio e Paulina com abusivo sarcasmo.”
“A banca foi cordialmente instalada pelo elegante dr. Leonardo Junqueira e logo se revelou por inteiro a ojeriza que o trabalho de Lins causara em Sinfrônio e Paulina. ‘Não tem valor, nem originalidade! É muito simbolismo; muita fumaça e pouco fogo, dizia o primeiro; enquanto a segunda o chamava de lixo! Era lamentável...” -, rememorava o velho Felisberto, tragando o seu interminável charuto.
“Fizemos as avaliações! A excelência de Tribuno não impediu a má-fé dos colegas. ‘Vamos ver a conferência final. Nela, ele se estrepa!’ - disseram os dois do contra. Diante disso, eu rompi com o regimento e decidi falar com Tribuno. Num intervalo de um dos 30 ou 50 cafezinhos, disse francamente ao rapaz que sua sorte estava selada. Sinfrônio o reprovaria por antipatia teórica, Paulina por inveja. O plano, entreguei sem papas na língua, é reprovar a conferência e com isso anular o exame usando a letra H, da alínea J, do parágrafo 12 dos Estatutos Acadêmicos Gerais. Tribuno ouviu e respondeu-me sem piscar: ‘Pode ser. Eu vou mudar tudo’.”
“Na sala repleta de mestres e alunos entendidos de sociologia comparativa - prosseguiu Felisberto - foi dada a palavra ao candidato que calmamente iniciou sua conferência: ‘Como sabemos, no coletivo Brasa-Bela, os rituais de iniciação masculinos são extremamente cruéis. Implicam a ablação do prepúcio, lutas corporais e corridas, além de jejum e dolorosas escarificações no tronco e nas pernas. Mas - continuava Tribuno - um noviço convertido ao cristianismo entrou em desespero e fugiu no exato momento em que deveria realizar o teste mais importante: a prova do formigueiro’. O candidato proferiu a frase e eu percebi que no rosto de Sinfrônio e Paulina, seus inimigos intelectuais, fulgurava surpresa’.”
“O jovem - diz, dobrando calmo mais uma página o candidato conferencista - foge com a intenção de tomar o santuário na casa do missionário local. Ali, encontraria repúdio a um ritual pagão. A esposa do missionário, porém, desencantada de tanta cegueira diante do pavor causado pela força do simbolismo humano, admite-o contra a vontade do marido. Isso feito, marido e mulher têm uma violenta discussão na frente do fugitivo que, apavorado, assiste ao inesperado: o missionário que pregava amor e perdão, aparece-lhe possuído pelo ódio. Um sentimento humano abominável que os ritos de passagem objetivavam precisamente inibir e controlar. Passada a discussão, entretanto, em plena madrugada, a mulher do missionário tem um acesso de melancolia e tenta matar-se. Outra surpresa para o nativo noviço, que esperava serem os cristãos mais coerentes com suas crenças. Finalmente, quando raia o sol, o noviço retorna para seu povo, pedindo para ser reiniciado, convicto de que sua sociedade era mais humana no tratamento dos desencontros.”
“Ele havia percebido - refletiu, olhando suas notas - que se tudo é arbitrário, então era melhor ficar com a sabedoria dos seus ancestrais. Mas seu gesto é rechaçado pelos anciãos, que o expulsam da tribo. Agora, sem ser adulto ou criança, sem poder assumir um papel nem dentro ou fora da tribo, o rapaz - arremata o candidato olhando para um silente público - anda bêbado pelas ruas de Amazonópolis. De quando em vez, pronuncia algo como rituais, coragem, covardia e dever...”
“Terminada a conferência, o prof. Sinfrônio e a dra. Paulina tinham os olhos cheios de lágrimas. O rito de passagem havia removido o orgulho e o ódio dos seus corações. Mas mesmo assim - concluiu o velho Felisberto - e, quem sabe, precisamente por tudo isso, o candidato foi reprovado!”
Roberto DaMatta
Nenhum comentário:
Postar um comentário