domingo, 19 de março de 2017

Labirinto

Ainda choro quando me lembro do menino João Hélio Fernandes Vieites.

Ele foi assassinado em 7 de fevereiro de 2007. Faz dez anos que morreu, arrastado pelas ruas entre Oswaldo Cruz e Cascadura.

A vida girou, e o horror da sua morte virou arquivo. Assim como hoje a paz no Rio parece converter-se em lembrança.

Minha enteada tinha 9 anos, e meu filho tinha 1 ano naquele dia da besta.

Fui morador do Campinho. Conhecia aqueles lugares.

Eu costumava colocar a ponta seca do compasso no prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, na Ilha do Fundão, e fazer um círculo. Eu e meu amigo Rafael Balbi morávamos no mesmo raio de distância de 13 quilômetros da escola que Jorge Machado Moreira projetou com rigor modernista para contar uma utopia brasileira.

Eu morava na Rua Pinto Teles e ele, no Alto Leblon. Eu a duas horas e meia da faculdade, ele a uma hora. A generosidade dele em me hospedar permitiu que eu frequentasse os bares, as festas e as alegrias do bom urbanismo da Zona Sul. Rafael tá no México. Sinto saudades.

Por que tamanha diferença na mobilidade urbana do Rio? Que fatos haviam levado a tal condição? Por que cidades são assim? Perguntas que eu queria equacionar.

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Parei no acostamento, no caminho de Nova Iguaçu, onde ia projetar praças, e chorei pelo menino morto. Foi suado comprar aquele carro para me livrar dos malditos ônibus. Ensopei com lágrimas minha direção assombrado por uma cadeirinha infantil vazia no banco traseiro.

Por que tamanha brutalidade contra uma criança? Haveria uma morte central e outra periférica? O que fazer? Como resolver? Pelo menos iria escrever.

Expeli uma carta que foi publicada no GLOBO. “Sintamos o horror desta morte. Até quando não vamos perceber a relação estrutural desta e de outras mortes com a corrupção de congressistas, supersalários do Judiciário, impunidade para fraudadores e desrespeito ao meio ambiente? O Brasil está sendo arrastado para a morte.” Escrevi. Ainda escrevo.

São Paulo, 26 de Fevereiro de 2017, um menino de 13 anos, João Victor de Souza Carvalho, morre em circunstâncias ainda por esclarecer junto a um restaurante de “comida rápida”. Há um vídeo nas marés da internet mostrando o menino sendo arrastado para o outro lado da rua por dois adultos e depositado. Seu corpo tem peso mas é mole. Sua bermuda cai. O vídeo é frio como é a calçada jazigo. Noutro vídeo o menino tenta agredir um adulto com um pedaço de pau. Laudos médicos contam de traços de cocaína e lança-perfume.

Assustam-me crianças em sonhos de cola ziguezagueando pelas ruas.

Ofereci um lanche. Mora onde? Nova Iguaçu. Conhece a praça tal? Sim. Fui eu que desenhei. Gosta de praça? Os olhos correm para lugar de tempo indefinido. Foi. Levou o salgado. Não terminou o suco.

Vejo a notícia de uma praça sendo vendida. Não vi direito a reportagem. Estava com pressa.

Por que aceitamos as crianças depositadas no éter?

Meninas e meninos vagam pelo Largo do Machado. Lá, uma bilheteria construída sobre os desenhos de Burle Marx engole dinheiros de tíquetes para ir ao Cristo. As crianças de cola correm. Dormem contorcidas sobre banco curvo moderno. Penso no Fundão.

A FAU pegou fogo. Vai fechar. A Maré e a Igreja da Penha viram quando eu beijei uma amiga no telhado lá. Havia tanto tempo e futuro. A faculdade parecia incendiária. Não queimada. Rio Cidade e Favela-Bairro nos inspiravam.

Ficava até a hora de fechar na farmácia do meu tio João de Deus, em Piedade, após voltar do Fundão. Gostava de fazer embalagens. Decifrar a lógica para achar remédios nas estantes. Morava com a família dele no Campinho. Ele confiava no subúrbio. Sinto saudades.

Assisti com meus primos filme de kung fu no Cine Piedade, no final da galeria da farmácia. Eu era criança de São Paulo. Havia muita luz no Rio.

Quem tinha 6 anos em 2008, quando foi implantada a primeira UPP, hoje tem 15. Se 8 fosse seria 17. Onde estão? Fazendo vestibular? No cinema?

Estudantes de várias partes do país aguardam a lista do Enem para entrarem em sequestros relâmpagos no Fundão.

Sai a lista do procurador-geral da República. Dezenas de adultos abraçados a dinheiros em delírios de cola de poder sem se importar com criança alguma. Apenas herdeiros.

O Instituto dos Pretos Novos vai fechar. É um sítio arqueológico onde estão os fragmentos depositados de corpos de adultos e crianças. É um “cemitério” de escravos. O casal Merced e Petrúcio cuida há 20 anos de um bem da República.

Não estão na lista de Brasília. Não têm dinheiro nem cola, mas oferecem um fio de Ariadne a quem chegar. Ajudam a decifrar o labirinto. A não esquecer.

Décadas de crianças perdidas.

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