1 — Todo brasileiro nasce num “Brasil” do carnaval. Aliás, sabemos que o Brasil é Brasil por causa do carnaval. A afirmação parece trivial, mas não é. Nem todo mundo conheceu o Brasil dos imperadores, dos escravos e das ditaduras. Dos Atos Institucionais e, hoje, das pantagruélicas roubalheiras e do neofascismo que liquida amizades, mas o carnaval continua. Repetir, como dizia Thomas Mann, é abolir a diferença entre o ser é o ter sido. Talvez mais do que qualquer outra instituição, o carnaval nos certifica de uma continuidade nacional.
2 — Se achamos que o mundo pode ser juridicamente resolvido, por que não abolir o carnaval? Esse carnaval que foi prova de preguiça, malandragem e mestiçagem doentia? Afinal, o “legal” é sinônimo de “bom” no Brasil.
3 — A questão, um tanto absurda, é posta nesta Quarta-Feira de Cinzas como parte de um pungente “exame antropológico de consciência”. Afinal, quando a gordura comida até Terça-Feira Gorda vira a cinza desta quarta, passamos do excesso (que engordura, denunciando uma concupiscência obrigatória) à carência das cinzas dos pecados, produzindo a fumaça mediadora entre a Terra e o Céu.
Eis um percurso cósmico, embora inconsciente: vamos da abundância festiva da carne à mortalha das cinzas ligadas à rotina do trabalho; da palavra (por contraste com o canto); da dança em cordão ou bloco (por oposição ao caminhar solitário).
4 — Em algum momento, o Brasil nos apresenta o carnaval. No meu caso ele surgiu em 1944, quando eu tinha meus 8 anos. Neste 2017, eu vivi o meu septuagésimo segundo carnaval. Não contamos carnavais porque ele não nos pertence. Ao contrário, ele é que nos engloba e coage.
5 — Escrevo vestido de “velho”, uma das minha fantasias favoritas num desses carnavais passados, quando pintei o cabelo de branco e arrumei um bigode e meia barba postiços. Olhei-me no espelho e vi minha figura como sou hoje!
6 — Quem apresentou o carnaval à minha consciência foi mamãe, quando fantasiou meus irmãos e eu de pierrô e nos levou a um obrigatório “baile infantil”. Salvaram-nos da tristeza de uma fantasia de pierrô as lança-perfumes e os confetes que usamos para esguichar nos olhos e jogar na boca dos outros meninos.
7 — Dez anos depois, aos 18 anos, fui levado por meu querido amigo Celso ao baile vespertino “Mamãe eu vou às compras”, na Associação dos Empregados do Comércio do Rio de Janeiro, no qual vivi a experiência de uma folia verdadeiramente rabelaisiana.
Reza a lenda que esse baile, realizado no Sábado Gordo, entre 16h e 20h, remetia às desculpas para as últimas compras destinadas às suas fantasias que as filhas de família davam em casa. Jamais comprovei tal história, mas transformei muitas fantasias em realidade com as fantasias daquelas moças.
8 — Mais tarde, quando me interessei pela festa como um ritual de passagem orgástico e licencioso (como folia ou maluquice num país também fabricado a bacharéis e vossas excelências), foi que descobri que o “Mamãe eu vou às compras” era da mesma linhagem do Baile do Cabide (onde todos penduravam a roupa num cabide) e do Baile da Corda, no qual as mulheres subiam de elevador, mas os homens tinham que usar uma corda!
Tais eram os mitos de um mundo no qual as mulheres eram alvo de um controle que, felizmente, passou.
9 — Voltando à questão inicial: você já pensou em isentar o Brasil desta festa por meio de uma lei devidamente legitimada pelo STF? Como modernizar o Brasil com o carnaval? Com essa festa obsoleta e inútil que não combina com um sistema utilitário (onde os fins e os meios estão relacionados), como manda a regra da racionalidade e da razão prática e, no limite, é imoral e obsceno?
10 — Afinal, para que serve o carnaval? O que ele comemora? Qual é o seu centro, alvo ou objetivo?
Vejam bem, não há funeral sem morto, casamento sem noivos, aniversário sem aniversariante, procissão sem santo, desfile militar sem data nacional e posse sem eleito. Mas o carnaval é múltiplo. Ele tem muitos sujeitos, eventos, espaços, roupagens, além de regras e contrarregras. Seu tempo é igualmente especial: ele começa quando você chega e acaba quando você vai embora. A liberdade de escolher como cada qual vai “brincar” é infinita. É até possível brincar não brincando. Cada um tem o seu carnaval e faz a festa dentro dos seus anseios e poderes. Ele é universal e nacional, e isso o diferencia de “carnavais locais” como o de Nice ou de Nova Orleans. Tais festividades pertencem às suas cidades, já o nosso é “brasileiro” e irrompe em toda a parte com sua inevitáveis variações regionais.
11 — O carnaval é uma linguagem que reúne e separa por muitos critérios. Sua regra de liberdade e igualdade se contradiz a todo momento, pois ele é também hierárquico, mas a contradição e a ambiguidade — eis o seu brasileirismo! — são o traço distintivo desta “folia”.
Seu único preceito é que tudo pode numa sociedade onde tudo não pode, exceto se você estiver no poder ou possuir a má-fé ideológica que move montanhas e destrói a razão, a honestidade e o bom senso.
12. O carnaval é a única maluquice que ninguém ousou mudar ou roubar. Porque ele, carnavalescamente, roubaria o ladrão.
Roberto DaMatta
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