Não deixa de ser paradoxal: ao mesmo tempo que se afogam num oceano de regras, os brasileiros têm de navegar numa realidade com regras sempre fluidas e situações muitas vezes resolvidas caso a caso.
Essa realidade traz graves prejuízos à economia. Por exemplo, força as empresas a gastar significativos recursos para conhecerem e cumprirem todas as regras. Fazer negócios vira um pesadelo: basta ver os resultados do último Doing Business, em que o Brasil figura entre os últimos colocados em itens como “abrir um negócio”, “pagar impostos” e “conseguir uma licença de construção”.
Se facilita a corrupção, essa realidade dificulta a vida do gestor honesto. Os gestores públicos têm de tomar decisões com base na interpretação das regras, mas essa interpretação nem sempre é a mesma dos órgãos de controle. Assim o gestor está sujeito a penas sérias, mesmo quando age com boas intenções. Isso incentiva o imobilismo, a não decisão, problema que se está alastrando.
Essa flexibilidade interpretativa também eleva o risco de investir e operar no Brasil, o que reduz o investimento, o emprego e a produção. Atividades reguladas e/ou dependentes de contratação, como finanças, inovação tecnológica e infraestrutura, têm dificuldade de prosperar nesse quadro.
O Brasil funciona na base do “jeitinho” há bastante tempo. Mas a falta de previsibilidade parece estar se agravando, entre outros motivos, pelo crescente número de brasileiros que buscam um “amigo” no Judiciário. O resultado é a crescente judicialização dos conflitos: em 1988 houve ação judicial em 45% dos conflitos, em 2009 essa taxa subiu para 70%.
Isso ajuda a explicar por que a Justiça recebeu 29 milhões de casos novos em 2014. Muitos desses casos trazem o conflito e os problemas sociais para dentro da Justiça, pondo os magistrados numa situação em que a norma e o drama pessoal aparecem em lados diferentes. E com o drama à porta nem sempre é a norma que prevalece. Em que pesem as boas intenções, porém, a pulverização das soluções não tem resolvido os problemas. Em parte, porque o que pode fazer sentido no caso individual pode não o fazer no coletivo.
A judicialização da saúde pública é um exemplo. Magistrados mudam a ordem das pessoas na fila de transplante, ordenam gastos elevados com remédios caros e impõem tratamentos de última geração, às vezes no exterior. Somadas as decisões, constata-se a alocação de parte relevante do orçamento público da saúde para um subgrupo de pacientes, deixando outros desassistidos e atrapalhando a gestão da saúde pública pelo Executivo.
A área de falências é outro exemplo. Alguns magistrados relutam em decretar a falência de empresas que deram errado, receando causar desemprego. O resultado disso, e da alta informalidade, é um número elevado de empresas ineficientes, que puxam a produtividade do País para baixo. Se decretada a falência, esses trabalhadores iriam se ocupar em outras empresas, onde sua produtividade seria mais alta.
A crescente judicialização da política é outro fenômeno que eleva a incerteza. Cada vez mais o conflito político se concentra nos tribunais. Hoje parece que as colunas de política dos jornais falam mais do STF que do Congresso.
É difícil ser otimista acerca desse processo: essa entropia tende a se autoalimentar. Na saúde, decisões favoráveis aos pacientes estimulam mais demandas judiciais. Na política, se o poder se concentra nos tribunais, é para lá que a briga pelo poder vai migrar.
Reverter esse processo é difícil. Por exemplo, no caso da Justiça, a grande latitude para sustentar variadas decisões com base em princípios constitucionais sugere que não se trata de aprovar novas leis. E o fato de os magistrados decidirem de forma monocrática, livres de regras do precedente, limita, ainda que não elimine, a influência da jurisprudência dos tribunais superiores. Não há sinal de que isso vá mudar.
Além do mais, há claros ganhadores com esse estado de coisas, que vão brigar contra mudanças. A tendência é que quem está fora também busque dar um “jeitinho”, um “amigo” que manda; ou, então, tente criar e implementar suas próprias regras. Há também um componente cultural, que valoriza a flexibilização das regras e desconsidera suas implicações sociais e econômicas.
Ainda assim, há medidas que talvez possam mitigar esse processo – quem sabe, até interrompê-lo. Por exemplo, cobrar autodisciplina dos órgãos públicos quanto à edição de regras, exigindo que para cada nova norma outras sejam eliminadas. Também pode ajudar a criação de um Fórum Nacional da Segurança Jurídica, envolvendo os três Poderes da República, que promova a clareza, a estabilidade, a impessoalidade e a previsibilidade das regras e de sua aplicação.
O Executivo, o Congresso, o Judiciário e a sociedade civil têm grandes pensadores. É hora de eles e elas mergulharem no problema de como melhorar a nossa segurança jurídica. Sem ela o nosso desenvolvimento econômico continuará devagar, quase parando.
Armando Castelar
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