Vale apelar para Santo Agostinho, que tanto se preocupou com o problema do mal. Para ele, não há dúvida de que o bem engloba o mal, mas ele não gostaria de viver num mundo sem os dois. O que seria do certo sem o errado? E da mão direita sem a esquerda que a complementa?
Não me julguem, amados leitores, como um um ingrato. Tenho muitas dívidas, mas estou seguro de que Deus escreve certo por linhas tortas. É como vejo a morte, que tudo perdoa e faz valorizar ainda mais as nossas vidas falíveis e cheias de frustração. Como diz meu amigo Mario Batalha: a morte, que não deixa ninguém de fora, é a prova final de uma suprema igualdade. Não há imprensa hegemônica, nazista ou liberal que possa transformá-la numa interpretação.
Chiara Bautista |
Ricardo, o morto que me obriga a escrever essas linhas, era um andarilho de vielas e avenidas das chamadas Ciências Humanas. Essas novas teologias que lidam com o que surge como paradoxal e com os inesperados provocados por regras sociais tidas como óbvias e certas. Como sócio-historiador de primeira categoria, Ricardinho, como nós os chamávamos por causa de seu temperamento simples, doce e generoso, sabia tudo, mas fingia que você o ensinava alguma coisa. Foi meu aluno no Museu Nacional nos idos e terríveis anos 70, os quais, não obstante, foram tão decisivos para a fundação da moderna antropologia social brasileira. A essa atitude, cujo propósito era o de compreender mais do que julgar, Ricardo deu uma inestimável contribuição, apreciando a obra de Gilberto Freyre no livro “Guerra e paz”. Um ensaio que só uma alma com o seu equilíbrio de rabino poderia ter produzido. Ali ele revela o erro de reduzir Freyre a uma só gaveta e discute a presença dos desequilíbrios presentes no Brasil inventado pela obra deste que foi o maior conhecedor do Brasil.
Ricardo partiu na mesma semana da ex-primeira-dama Marisa Letícia da Silva e no vácuo causado pela morte por acidente do ministro do STF Teori Zavascki. Todos deixam uma onda de sofrimento e de empatia, que abrem espaço para as tréguas da civilidade e do coração, abafando ressentimentos e diferenças.
É o trabalho do morto e da morte que obriga a um doloroso desfazer do corpo e, ao mesmo tempo, tentar preencher o seu lugar na rede social de que fazia parte. A dor é enorme, mas dela brota a ressurreição naquilo que nós, falantes de português, chamamos de saudade.
Eis o que dela diz um Joaquim Nabuco, mais antropólogo social do que político, numa palestra que proferiu no Vassar College, Estados Unidos, em 1909:
“Mas como traduzir um sentimento que em língua alguma, a não ser na nossa, se cristalizou numa única palavra? Consideramos e proclamamos esse vocábulo o mais lindo que existe em qualquer idioma, a pérola da linguagem humana. Ele exprime as lembranças tristes da vida, mas também suas esperanças imperecíveis. Os túmulos trazem-no gravado como inscrição: saudade. A mensagem dos amantes entre eles é saudade. Saudade é a mensagem dos ausentes à pátria e aos amigos. Saudade, como vedes, é a hera do coração, presa às suas ruínas e crescendo na própria solidão. Para traduzir-lhe o sentido, precisaríeis, em inglês, de quatro palavras: remembrance, love, grief e longing. Omitindo uma delas, não se traduziria o sentimento completo. No entanto, saudade não é senão uma nova forma, polida pelas lágrimas, da palavra soledade, solidão”.
Até o momento no qual aqueles que partiram sejam devida e humanamente esquecidos e, às vezes, lembrados como vai ocorrer com todos e tudo neste mundo, o qual, como dizia Thornton Wilder, só pode ser unido ao outro pela ponte do amor.
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