quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Perplexidades

Não me conformo com gigantescas desigualdades salariais. Como antropologista, eu obviamente compreendo que um banqueiro, um empresário, um jogador de futebol, um astro de novelas, um cantor-compositor popular ganhe num mês muito mais o que toda a minha família conseguiu juntar em muitas gerações. Mas a compreensão não acaba com o meu ressentimento de ser professor num país onde ensinar é uma atividade profundamente desvalorizada, coisa para quem não sabe!

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Meu avô foi desembargador pelo Estado do Amazonas, e meu pai era fiscal do consumo. Não ganhavam mal e eram parte das “classes dominantes”, conforme aprendi atônito no diretório da faculdade no qual aprendi minhas primeiras e erradas letras ideológicas.

Não sofri carência material, e nossa casa, com seus serviçais, reproduzia o ordinário de vida dos que eram significativamente chamados de “remediados”. Gente que o realismo de vovó Emerentina dizia ser parte de uma “pobreza envergonhada” porque não podiam usar sapatos furados, tinham contas a pagar e manter um estilo de vida de molde aristocrático.

Ouvi, é claro, histórias de funcionários públicos que “roubavam”, por oposição à honestidade canina da família, que recusava seguir o caminho da “política” — uma dimensão destinada a seduzir, enriquecer e eventualmente desmoralizar.

Vivi, pois, comendo o que havia na mesa. Não poderia jamais imaginar que os “remediados” de hoje levariam seus mal-educados filhinhos à Disney, enquanto meus cinco irmãos e eu íamos, no máximo, ao cinema.

Vivi num mundo com larápios mas sem “corruptos”. Alguns dos quais eram conhecidos e compadres. Arrumavam-se pelos laços pessoais chamados de “política”, e era inimaginável que um partido de esquerda viesse a engendrar um sindicato do crime composto por controladores do patrimônio do país e alguns empresários ousados e canalhas.
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Hoje, o ideal é todo mundo ser rico. Donald Trump e os seus irmãos brasileiros encarnam esse estilo próprio dos vencedores arrogantes que se sentem violentados quando viram réus. O melhor símbolo da riqueza como valor absoluto, porém, é o grupo dos oito hipermilionários que detêm um patrimônio igual à metade mais pobre da população do planeta.

Eu fui ensinado que há vergonha tanto na extrema pobreza quanto na riqueza podre, porque desmedida. Daí a minha indignação com essas brutais diferenças. Oito tendo mais do que um bilhão é um acinte a qualquer código moral. Os seus deuses podem aceitar (e justificar) tal desigualdade, mas a minha moralidade humana — finita, indigna e conservadora — não tolera esse abismo.
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A perplexidade diante de um mundo quantificado ao culhaonésimo, como dizia meu tio Silvio; um universo canibalizado pelo mercado e em sintonia com a comunicação de tudo com todos e de todos com o planeta que também é visível faz com que se veja o tamanho da desigualdade e o abismo da (in)diferença nas quais estou, sem pedir, engolfado.
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Aprendi que a transformação de tudo em mercadoria levaria a um estilo de vida onipotente e afinado ao suicídio. Hoje, essas absurdidades são reais.

Se oito possuem (com toda a filantropia que praticam e a boa vontade que podem ter) a riqueza das nações, estamos diante do milagre da multiplicação ao inverso. Multiplicamos tudo mas, quanto mais produzimos, pior distribuímos. A abundância engendra riqueza e, ao mesmo tempo, desperdício e miséria.

Creio porque é absurdo! Dizia Tertuliano nos primórdios do cristianismo que propôs deixar o familismo tribal, partidário e faccional para abraçar a fraternidade universal. Não faça com o outro aquilo que você não quer que seja feito com você!

O que mais fazer com uma coluna?
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A mensagem de um Richard Moneygrand deprimido afirma que Donald Trump presidente vai além de um acidente eleitoral. Ele é, de fato, o retorno da hierarquia e do particularismo patriótico, numa sociedade ressentida com o universalismo e com suas perdas globais. Trump — continua meu mentor — é prenúncio de choque com a mídia e dos conflitos de interesse que ameaçam, como disse Obama num notável discurso de despedida, a dimensão mais árdua da democracia e um autogoverno funcional. Esse self-government, cuja primeira exgiência é dizer não a nós mesmos.

PS: Lamento a morte do ministro Teori Zavascki e continuo perplexo com o poder de mando das facções degoladoras que, aprisionadas, têm mais influência do que os professores teoricamente livres de Uerj e da Uenf — essas facções do bem que estão se acabando.

Roberto DaMatta

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