domingo, 1 de maio de 2016

Por um debate fecundo

Faltam metáforas. É mais que um atoleiro. Não se trata apenas de constatar que o país está paralisado ou congelado, rolando morro abaixo. A situação de emergência obriga a estabelecer prioridades.

Não se pode ficar esperando que o céu nos caia sobre a cabeça, que o país quebre de uma vez, enquanto não se faz nada e os aposentados continuam sem receber, os hospitais sem atender, os alunos sem aulas, a segurança pública se deteriorando mais do que nunca, as obras interrompidas, e um cortejo de horrores se sucedendo. Já que a realidade não tem nada a ver com o mundo de mentirinha que a propaganda governamental insistia em mostrar, era óbvio que a conta dos desmandos ia chegar.

Chegou.

Com ou sem impeachment, é urgente ter clareza sobre o que é inadiável e prioritário.

Não dá para desviar o foco o tempo todo ou embromar e postergar indefinidamente. As discussões precisam deixar de lado a raiva espumando, a saliva e as cusparadas e tentar enxergar as prioridades.

Vai ser preciso negociar, buscar consenso.

Seria bom se cada um de nós, ao menos para si mesmo, se preparasse para esse debate e encarasse certas questões. Por exemplo, quais os pontos fundamentais a enfrentar com urgência?

Na primeira pessoa, e sem pretender impor nada a ninguém, de minha parte creio que há um tripé, no qual duas pernas são emergenciais: a economia e o respeito à Justiça.

Há que tomar medidas econômicas urgentes para restabelecer confiança no Brasil, mostrando que somos capazes de ver e dizer a verdade nessa área, merecemos credibilidade, reconhecemos nossos erros e nos dispomos a consertá-los. Mais que isso, é preciso um projeto para o país, formulado com nitidez e competência, reafirmando que a responsabilidade é um valor respeitado e a política econômica não será uma rolha na água, ao sabor de ondas e ventos, mas uma navegação segura e consciente rumo a um porto determinado, mesmo que o mar esteja grosso.

Ao mesmo tempo, tenhamos clareza sobre as conquistas de que não estamos dispostos a abrir mão, sobre quanta solidariedade queremos ter com os mais sacrificados em nossa sociedade, a quantos e quais privilégios podemos renunciar, que valor damos à equidade. Já que o dinheiro público não é infinito, a sociedade precisa definir onde ele deve ser gasto.

Que cada um veja o que pensa, para arejar a discussão sem seguir a manada. Por exemplo, universidade pública ou ensino fundamental e médio de melhor qualidade? Subsídios para empresas? Estabilidade para funcionário público que não produza? Pensões eternas para filhas e viúvas de militares? Aposentadorias prematuras? Isenção fiscal para igrejas? Para partidos políticos? Aumento dos recursos do fundo partidário? E precisa ter tanto partido assim? Tanto burocrata pago com dinheiro público? Tanto ministério? Tanto deputado? Tanto município? Onde se pode cortar?

São muitos ralos por onde escorre a riqueza da nação, vamos ter de fechar alguns. Quais? Até que ponto vamos deixar que privilégios se confundam com direitos adquiridos?

Vale lembrar que em nossa história, para retardar a Abolição, já tivemos o vergonhoso argumento de que donos de escravos, ao comprarem sua mercadoria humana, adquiriam direitos que precisavam ser mantidos ou indenizados.

Outra coluna prioritária é a garantia de que a Justiça vai ser para todos, sem se tolerar qualquer tentativa de obstruí-la. Para isso, as investigações devem continuar, a Lava-Jato não pode ser cerceada, o Ministério Público e o STF devem cumprir seu papel constitucional, o sigilo deve ser mantido enquanto necessário e ceder a vez à transparência e à publicidade quando não o for mais. Como a lei manda.

Garantidos esses dois pilares básicos, vai ser preciso enfrentar o terceiro: mudar a estrutura eleitoral e partidária que distorce nossos votos na ponto de sentirmos que os chamados representantes do povo não nos representam.

Essa reforma política ampla é também fundamental, para buscarmos regras que aperfeiçoem o processo e evitarmos a repetição dessas tristes realidades a que temos assistido — das campanhas mentirosas vencedoras, à eleição de candidatos menos votados que os derrotados.

Será necessário criar antídotos para a compra de votos e punir a corrupção “esperta” disfarçada de legal. Limitar o foro privilegiado ou acabar com ele. Discutir o fim da reeleição, voto distrital misto, mecanismos de recall. Mas esse conjunto de reformas, igualmente essencial, exige um debate multifacetado e constitui um processo mais lento e menos emergencial.

Se conseguirmos prioritariamente aumentar a confiança na economia com medidas responsáveis e eficientes, e se garantirmos a continuidade das investigações na Justiça, estaremos dando os primeiros passos. De gigante, mas possíveis.

O país tem instituições fortes, quadros capazes e potencial para isso. Porém, cada um deve ter consciência de quanto se dispõe a colaborar para um debate mais isento e realista. Mais útil e fecundo. E caminhar nesse sentido.

Ana Maria Machado 

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