A mim fascinam-me os personagens perversos. Tento encontrar neles algo que os resgate. Uma centelha de humanidade. Também me interessa perceber como alguém escolhe um lado ou outro: pessoas cujo destino as empurrou, desde muito cedo, para a escuridão, mas que conseguem (rindo) alçar-se para o lado luminoso da vida; pessoas que, pelo contrário, nasceram com o caminho desimpedido e escolheram a corrupção e a maldade.
Numa guerra, combatentes e não combatentes estão autorizados a ser maus. A maldade é encorajada. Cidadãos comuns transformam-se em monstros. Acontece algo semelhante a populações sujeitas a regimes totalitários. Em países democráticos, mas com graves distorções sociais, como o Brasil, a situação pode não ser muito melhor. Sociedades doentes empurram as pessoas para o lado escuro.
Rosa de porcelana (Etlingera elatior) |
Há pessoas boas por pura preguiça. Outras são más pela mesma razão. Quer a verdadeira bondade quer a verdadeira maldade exigem esforço. Sérgio é um bom exemplo de alguém contra quem a vida se acirrou, desde muito cedo, à dentada e à patada, e que parecia condenado a permanecer para sempre no seu lado mais sombrio. Contudo, escolheu lutar contra a escuridão e triunfou. “Você leu ‘Capitães da Areia’?”, perguntou-me. E os olhos dele encheram-se de lágrimas. Sim, eu li Jorge Amado de uma ponta a outra. Aprendi com Jorge Amado, o qual, por sua vez, deve ter aprendido, nos terreiros, com a filosofia dos orixás, que somos todos feitos de um pouco de luz e de outro tanto de sombras.
Conheci um antigo guerrilheiro, que viveu quase 20 anos nas matas de Angola, combatendo numa guerra insana e particularmente cruel, e que hoje cultiva e vende rosas de porcelana. A rosa de porcelana (Etlingera elatior) é uma planta, originária da Ásia, que foi introduzida com imenso sucesso em Angola, ainda no tempo colonial. Dá uma flor enorme, belíssima e delicada, que parece realmente ter sido moldada em porcelana. Visitei o antigo guerrilheiro em Benguela, uma velha cidade junto à costa, onde agora vive. Perguntei-lhe, como pergunto sempre a quem fez guerras, como consegue adormecer, à noite, tendo às costas tantos mortos e tanta dor. “Matar era fácil”, disse-me. “Era o que se esperava de nós. É muito mais difícil agora pensar nessas mortes. O que me salva hoje é a beleza das rosas.”
Não estou certo de que a beleza nos salve. Mas ajuda.José Eduardo Agualusa
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