terça-feira, 11 de novembro de 2025

Pose e remorso

Foi preciso que um drone filmasse o Sudão, e que alguém o publicasse, para que víssemos o horror como se o horror só existisse depois de filmado. Na imagem, um puzzle de terra e de sangue. Uma mancha encarnada no meio daquela aridez em miniatura. Mas não nos comovamos. A imagem não conta para nada sem o aplauso certo, no salão certo, da audiência certa

Há sempre um instante em que a alma se entrega. Não à verdade, mas à causa. Que paixão é essa que nos empurra, que nos obriga a escolher bandeiras, a entregarmo-nos a uma encenação de convicção, tão pura quanto verosímil? É o mesmo impulso que fazia os mártires correr para o cadafalso? Essa fome de Deus? Essa fome de pureza? A segunda, vos digo. E quem não a tem arranja um keffieh. Amarra-o ao pescoço, ou faz dele um saiote, e acredita que salvou alguma coisa.


Adere-se como se pode. Há quem o faça por fé, há quem o faça por ajuste directo, assinando minutas com a própria vaidade. Em nenhum dos casos se olha a realidade nos olhos: não se sabe, não se quer, não dá. A realidade é vítrea, reflecte e mostra sempre o que nos desconfirma; e por isso é que mesmo o mais abjecto episódio da série South Park tem sempre qualquer coisa de profético.

Só assim se entende que a causa palestiniana tenha tantos devotos e há tanto tempo, enquanto o Sudão, pobre Sudão, arde sem ninguém dar por isso. Ou os cristãos da Nigéria, resgatados da insipiência do mundo à força de um ensejo de Donald Trump. Mas não há verso, não há concerto, não há bandeirinha na algibeira de nenhum artista sério — de nenhum artista que procure ser levado a sério.

Foi preciso que um drone filmasse o Sudão, e que alguém o publicasse, para que víssemos o horror como se o horror só existisse depois de filmado. Na imagem, um puzzle de terra e de sangue. Uma mancha encarnada no meio daquela aridez em miniatura. Mas não nos comovamos. A imagem não conta para nada sem o aplauso certo, no salão certo, da audiência certa.

É que vivemos saturados de desgraça, anestesiados pela profusão de tantas agonias. O que verdadeiramente nos move é a própria sensação de movimento. Como crianças no mar, fazendo carreirinhas nas espumas do Verão. E então discute-se de cara séria o boicote a cantores israelitas; embarca-se nas tais flotilhas; e — não fora já assinado o famigerado tratado de paz — participa-se em manifestações de delírio e febre. Como no degelo de uma crença onde a emoção triunfa por afogamento.

O caso é tramado. Nada entusiasma mais os nossos artistas do que confundir a vaidade de parecerem bons com a virtude de o serem; e sempre que a classe artística se une, é sinal de que o Diabo está ali mesmo, de cócoras no estrado, ávido da estetização da má consciência. Sobretudo os músicos: vão de palco em palco, de censura em censura, lavando a piedade em cada verso; erguendo o dedo indicador. De lenço ao pescoço, alardeando a sua virtude, o seu civismo, o seu compromisso com o mundo, essa sensibilidade tão individual que é, afinal, a mesma de toda a gente. Céus, como toda a gente anseia ser como toda a gente. E como escapa a toda a gente que talvez toda a gente não seja medida para ninguém.

Não discuto Gaza. Não discuto nada. Lamento e sofro os factos, como todo o cristão que reza rodeado de ruínas. O que não suporto é a mentira e, hoje mesmo, a mentira ingénua — sobretudo essa. Um gato é um gato, um cão é um cão. etc. etc.: “genocídio” é “genocídio”, a violência em Gaza é a violência em Gaza. A piedade de ocasião é a piedade de ocasião. E a humanidade, essa vedeta obstinada, nunca soube viver senão de pose e de remorso.

Talvez o homem tenha precisado sempre de fingir que sente para se convencer de que existe. Talvez vejamos nas causas esse fragmento de bem que já não conseguimos praticar. Eu às vezes penso que a história se repete no tédio: como se o mundo se aborrecesse de si próprio e reinventasse tragédias para se entreter.

E então o Sudão e a Nigéria, outra coisa qualquer; a própria Palestina, tornar-se-ão sombras; palavras que, outrora, deixaram de rimar. Acabarão, então, por morrer; pelo menos duas vezes: primeiro como lugar, mais tarde como memória.

E isto fez-me lembrar (último suspiro depois do escárnio) aquele verso de Manuel António Pina enquanto viajava por Andorre-la-Veille: “Voltamos sempre ao princípio, estamos perdidos!”

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