Obviamente que a sentença anterior se trata de uma grande ironia pincelando medos, angústias, desconhecimentos e ressentimentos de cunho estrutural profundo. No entanto, por mais abstratas, falsas e mal fundamentadas conceitualmente, elas ocupam espaços cotidianos e pautam agendas políticas com grande impacto social, as quais afetam o jogo político, a democracia e o exercício coletivo da cidadania.
De alguns anos para cá a extrema direita ganhou espaço no mundo político ao redor do globo, indicando que a democracia não estava plenamente estabelecida e tais grupos nunca haviam desaparecido completamente. Alguns políticos performam a ascensão e a virilidade do movimento com gestos e instrumentos (armas, motosserras, martelos, etc.), como Jair Bolsonaro, Donald Trump, Javier Milei e Matteo Salvini. Inclusive, alguns deles sendo associados a mitos e heróis, porém, se analisarmos o conteúdo de tais termos, encontramos elementos caros à sua construção política contemporânea, como também sua desconstrução necessária e urgente.
Grande parte de seus sucessos ocorreram pela estratégica manipulação de desinformações e uso de redes sociais, com fantasias – e não “teorias” – da conspiração, como bem demonstra Paolo Demuru em seu recente livro Políticas do encanto (2024).Na obra, o autor demonstra como insatisfações e ressentimentos são capturados pelo populismo conspiratório de extrema direita ao encantar, entrar em transe e catalisar o ódio. Condições estruturais e crises cíclicas do capitalismo desde o domínio neoliberal, a flexibilização e a precarização do trabalho, a individualização massiva até o consumo desenfreado, em contraste com o ganho de direitos civis de populações marginalizadas e segregadas historicamente, resultaram em sentimentos dispersos e desorganizados, os quais foram organizados pelo encantamento de soluções fáceis: ódio.
O corpo social da extrema direita – e sua manipulação – é sempre pautado (ou estimulado) por “segredos” de uma nova ordem mundial, pelo deslumbre do suposto acesso e gozo em desvendar a “verdade oculta” estimulam o corpo social da extrema direita. Os exemplos vão desde Trump ser o herói contra uma suposta seita satânica e pedófila ao Bolsonaro como um militar exemplar, outsider político e mito de um passado idílico, quando, na realidade, as aproximações do estadunidense com Epstein são impactantes e o acomodado Bolsonaro tendo realizado pouco serviço político, muita insubordinação militar e sem reconhecimento pelo próprio Figueiredo. Atualmente, a cultura de direita produz “máquinas mitológicas” como dispositivos narrativos combinando fatos e ficções politicamente capitalizáveis.
No entanto, tais narrativas preenchem as lacunas das frustrações populacionais não resolvidas ao se orientarem por fantasias de conspiração por constituírem a eficácia simbólica de um sistema. Lévi-Strauss já apontou que os elementos necessários para a coesão da eficiência simbólica num sistema mítico – mas não só – são: um agente que pratica e performa a cura, um doente que acredite nela e o pertencimento como membro de uma sociedade que também acredita. O doente aceita não colocando a doença em dúvida, pois as dores são incoerentes e arbitrárias, e o agente reintegra um conjunto em que os elementos se apoiam mutuamente. “O xamã [agente] fornece à sua doente uma linguagem, na qual se podem exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro modo informuláveis”.
Alguns poderiam questionar a distância teórica entre o estudo de rituais xamânicos e a análise política contemporânea, porém uma das belezas das ciências humanas e sociais consiste justamente no processo de transformação e congruência de tais áreas. Como o estruturalista francês expôs: “nada se assemelha mais ao pensamento mítico que a ideologia política. Em nossas sociedades contemporâneas, talvez esta tenha se limitado a substituir aquele”. A encantação é uma experiência sensorial e corpórea, pois afeta o corpo do sujeito e não apenas as ideias.
Agora os mecanismos que antes estavam fora de controle se ajustam e alcançam um funcionamento ordenado se edificando nos diferentes níveis do doente: “processos orgânicos, psiquismo inconsciente, pensamento refletido”. Tal efeito encontra-se praticado politicamente na sociedade ocidental contemporânea, seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Argentina, na Itália, em Israel ou qualquer outro país. Tudo pode acontecer no mito, pois assim como toda relação concebível é possível, sua adaptação também é: “nada é como parece”, “nada acontece por acaso”, “tudo está conectado”, “mais 72h”, “trust the plan” [“confie no plano”], “urnas fraudadas”, exemplos não faltam.
A replicabilidade dos mitos é um fator fundamental para sua perpetuação, estruturando-o, pois, “todo mito possui […] uma estrutura folhada que transparece na superfície […] no e pelo processo de repetição”. Isto é, o modo de funcionamento de estruturação como uma resposta a uma situação do momento é similar e rima, porém possui particularidades locais históricas e geográficas singulares. As motivações de Trump como “herói” não são as mesmas que Bolsonaro como “mito” no Brasil, nem mesmo são a suposta aliança e apoio antidemocrático atual, mas são interesses imperialistas de um lado e personalistas do outro.
Antecessor, mas condicionante dos mitos até agora mencionados, temos um dos mais difundidos pela indústria cultural, neoimperialismo, hard e soft power, entre outras formas: a dominância global dos Estados Unidos como detentores da tutela democrática ao redor do mundo. Quando na realidade a – desde sempre peculiar – democracia estadunidense está em erosão e – mais uma vez, porém de novas formas – afetando outras democracias ao redor do globo. Outro mito, agora brasileiro, consiste na narrativa da defesa das liberdades pelas mãos daqueles que perpetraram a ditadura militar brasileira. Ambos esvaziaram o conteúdo dos conceitos e criaram sistemas de sentidos próprios, porém que afetam a realidade e outras vidas, majoritariamente performados por líderes homens, brancos, supostamente “viris” e com a construção de um carisma político estranho, falacioso e capenga.
Sabendo que não será possível mudar a realidade de cima para baixo, a aposta é no debunking strictu sensu, a desconstrução das fantasias de extrema direita, sobre bases afetivas e sensíveis por meio das interações diretas com aqueles conhecidos, tomando cuidado com o que e como se diz, criando um momento de “respeito”, “confiança”, “engajamento” e “afeto”. Assim, por meio dos afetos, o processo de cura e re-encantamento poderá se espraiar mudando os rumos políticos que as fantasias instauraram, depondo líderes falsos curandeiros e estabelecendo uma sociedade informada que acredite no re-encanto político.
Maurício Brugnaro Júnior

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