quarta-feira, 5 de novembro de 2025

IA, energia e… água: o custo invisível da nova revolução digital

Vivemos um período marcado por uma corrida sem precedentes à Inteligência Artificial (IA), uma tecnologia que tem o poder de reconfigurar todo o nosso modelo económico e social. Mas, enquanto nos deixamos cativar pelas suas potencialidades, ignoramos, muitas vezes, os custos reais que a IA está a gerar. Não apenas em termos de energia, mas, de forma ainda mais crítica, no consumo de água potável.


Eric Schmidt, ex-CEO da Google, escreveu recentemente num artigo que o verdadeiro limite da IA já não reside nos chips, mas sim na eletricidade consumida. As estimativas traçam um cenário tão claro quanto inquietante: se o atual ritmo de crescimento se mantiver, os Estados Unidos da América (EUA) poderão precisar de 92 gigawatts adicionais apenas para alimentar os modelos de IA. Se considerarmos que uma central nuclear gera, em média, 1 gigawatt, estamos perante o equivalente à construção de 92 novas centrais.

Mas há um tema ainda mais ausente do debate público e com um impacto significativo: o uso intensivo de água potável para arrefecer os servidores e os data centers que sustentam esta nova economia digital. E não, não estamos a falar de processos circulares, como nas antigas centrais de Sines, onde a água era utilizada para o arrefecimento e depois devolvida ao mar. Falamos, sim, de água potável canalizada diretamente das redes públicas, usada para o arrefecimento dos sistemas operacionais e que, no fim do processo, se evapora totalmente, sem possibilidade de reutilização.

Segundo estimativas recentes, o treino de um único modelo de IA, como o GPT-4, pode levar à evaporação de até 700 mil litros de água potável. E o cenário tende a agravar-se: até 2027, os sistemas de Inteligência Artificial poderão consumir entre 4,2 e 6,6 milhões de metros cúbicos de água — o equivalente ao consumo anual de quatro a seis países da dimensão da Dinamarca, ou a metade do consumo do Reino Unido.

Mais preocupante ainda é o facto de esta sede digital estar a crescer precisamente em regiões sob forte escassez hídrica. Nos EUA, estados como o Arizona, com falta de água crónica, instalaram um total de 26 data centers só desde 2022. Já na Europa, observamos casos como o da Catalunha, que impõe restrições severas ao uso de água por parte de cidadãos e agricultores, mas continua a aprovar centros de dados que consomem milhões de litros.

Enquanto sociedade, parecemos aceitar esta contradição sem qualquer debate. Apenas 41% dos data centers divulgam publicamente o seu consumo de água, protegendo essa informação sob o véu do “segredo comercial”. No entanto, como escreveu recentemente Henrique Raposo, a água não é uma propriedade privada. É um bem público que não pode ser usado de forma indiscriminada por decisões empresariais tomadas à porta fechada.

A transição digital não pode acontecer à margem da sustentabilidade. As empresas tecnológicas têm de ser responsabilizadas, e os decisores públicos têm de legislar com base em critérios ambientais rigorosos, que considerem não apenas a eficiência energética, mas também a hídrica.

Num contexto de emergência climática, talvez devêssemos estar a debater outras questões. Por exemplo, como compatibilizamos a Inteligência Artificial com a sustentabilidade? De que forma regulamos o consumo hídrico desta nova infraestrutura tecnológica? Que alternativas existem — a dessalinização, a reutilização da água ou até mesmo a localização estratégica dos centros de dados em regiões com menor stress hídrico?

A discussão sobre a IA não pode continuar confinada à sua dimensão tecnológica ou económica. Tem de ser, acima de tudo, ecológica, ética e transparente. Mais do que nos perguntarmos se a IA veio para nos roubar o emprego, talvez devêssemos abrir espaço para uma questão mais urgente: vai a IA ficar com a nossa água?

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