O carro dos meus parentes era eléctrico. Porém, chamar-lhe assim é pouco. Este é um daqueles casos em que, por decência filológica, o adjectivo deve converter-se em substantivo. Exacto, o carro era, na realidade, um Eléctrico, com maiúscula. Movia-se lento e cerimonioso como os transportes de antigamente, dependente de paragens obrigatórias, impondo ao tripulante uma cadência mais contemplativa do que funcional. O que seria símbolo de avanço tecnológico transformava-se em objecto poético do passado. E a viagem numa romaria penitencial movida a watts e introspecção.
Em vez da A1, escolhemos a A8. Porque “há menos trânsito”, porque “terá, com certeza, bons carregadores”. Ah, o optimismo! Esse desacerto português que nos faz acreditar no inalcançável. O trânsito era avassalador, e o optimismo energético durou apenas até à Área de Serviço da Vagos, onde o carregador de automóveis estava ocupado por dois outros fiéis, dois amigos que também viajavam juntos. Ficámos ali, feitos peregrinos, à espera do futuro que carregava sem pressas.
A meia hora de espera custava a passar. Comprei jornais que ainda não tinha lido e li-os de uma ponta a outra. Adquiriram-se salgadinhos e bebidas como puro entretém. (Quanto café é socialmente aceitável pedir enquanto se aguarda por um desfecho?) Os miúdos trepavam ao telheiro do parque de merendas da bomba de gasolina, desafiando as leis da gravidade e da responsabilidade parental. Quando finalmente chegou a nossa vez, confirmámos com serenidade o óbvio: o carregador era dos lentos — dos muito lentos — e antecipava cinco horas e meia para atingir uma percentagem aceitável. A ironia da situação apontava-nos o dedo com uma mão e tapava as gargalhadas com a outra. E aquela jornada eléctrica era o futuro a devolver-nos o tempo humano.
Era preciso um carregador dos rápidos. A aplicação dizia: Vagos. E Vagos foi o nome inscrito no túmulo da modernidade.
Abandonámos a auto-estrada e entrámos na Nacional. O século XXI acabava na saída 13, e Ponte de Vagos era o nome que marcava a passagem para outro tempo, talvez para 1988. Naquelas curvas redescobríamos os montes, as feiras, os cães vadios, o país dos cartazes a dizer “vende-se lenha” ou “aluga-se quarto”, gente na paragem da camioneta. Portugal, um pouco por todo o lado, voltava a ser enorme e, pela primeira vez em muito tempo, um pouco trágico também. Sentado no banco de trás, eu contentava-me com aquele pequeno concentrado de validação de todas as minhas implicações tecnológicas. Sou uma alma simples.
Em Vagos, junto a uma Alves Bandeira (essa gasolineira fascinante que só existe no Portugal B), ligámos a viatura à esperança de nos pormos a andar o mais depressa possível dali para fora. Mas ainda vimos a segunda parte do Benfica, experimentámos o sabor do pão da Beira Litoral e, num momento de superstição colectiva, como quem exige explicações à ventura, jogámos no Totoloto.
Restabelecidos, abandonámos a simpática localidade, mas o meu cunhado, exausto, entregou-me o volante. Era como se abandonasse a fé que um dia tivera no progresso, resignado a simulá-la: — “A questão tem que ver com uma peça que permite que os carregadores arrefeçam rápido quando se desliga o carro. Aí sim o carregamento é mais eficaz.”, dizia-nos ele.
Conduzi a não mais de cem à hora, vendo os faróis que nos ultrapassavam devagarinho. Pensei: eis o futuro – uma estrada silenciosa, carros bondosos e condutores sonâmbulos, como numa fila de racionamento, obedientes à lentidão disciplinada de um mundo alísio.
Naquele ritmo hipnótico, sob o zumbido do motor, enquanto a bateria descia dos 60 para os 59%, apercebi-me de uma coisa que Chesterton teria amado: os homens preferem ser conduzidos a serem livres. Humildes e mansos, estamos a prepararmo-nos para mais uma dessas derradeiras loucuras da espécie que pululam pelo século. Desta vez será o dia em que os carros se conduzirão sozinhos. Quando esse dia chegar — está quase — teremos saudades destes eléctricos. Pensaremos neles como máquinas que anunciavam o futuro apenas para nos devolver, pacientes, a lentidão antiga das coisas; e que nos levavam para trás, de volta à infância do mundo.

Nenhum comentário:
Postar um comentário