sábado, 25 de outubro de 2025

Gaza: a trégua que nunca chega

A tão anunciada interrupção da guerra no território palestiniano revelou-se, mais uma vez, uma ilusão diplomática. Apesar dos comunicados triunfais e das fotografias cuidadosamente encenadas nas capitais ocidentais, o som das explosões continua a ecoar sobre as ruínas de um território exausto, onde a população civil tenta sobreviver entre promessas de cessar-fogo e a brutalidade quotidiana das operações militares. A retórica da paz transformou-se, neste conflito, num instrumento político — não numa realidade no terreno.

Nas últimas semanas, governos e organismos internacionais celebraram o que chamaram de “pausa humanitária”, fruto de negociações entre Israel, mediadores regionais e a Organização das Nações Unidas. Contudo, como sublinhou António Guterres, Secretário-Geral da ONU, o que se observa em Gaza está longe de constituir uma trégua autêntica: os bombardeamentos prosseguem em várias zonas, os corredores humanitários funcionam de forma intermitente e a ajuda que entra permanece manifestamente insuficiente perante a catástrofe em curso.


A dimensão prática dessa limitação é devastadora. Agências humanitárias e organismos das Nações Unidas relatam que o fluxo de alimentos, água, combustível e medicamentos está muito aquém do necessário. Muitos camiões ficam horas retidos nos controlos fronteiriços ou são desviados, e o acesso a Gaza City e às áreas do Norte continua severamente restringido. Sem corredores seguros e sem garantias de distribuição, o auxílio transforma-se em imagens e estatísticas — não em socorro real às famílias encurraladas.

Politicamente, o suposto compasso de alívio está refém de interesses contraditórios. A intervenção diplomática de Washington, fortemente influenciada por Donald Trump, construiu uma narrativa ambígua: por um lado, exalta-se a negociação que permitiu a libertação de reféns e a abertura limitada de rotas de ajuda; por outro, declarações sobre a Cisjordânia — incluindo o anúncio do presidente norte-americano de que não permitirá uma anexação formal — misturam-se a gestos que alimentam desconfianças regionais. Essa ambivalência mina qualquer consolidação de confiança: a diplomacia que proclama paz, enquanto impõe condições territoriais, inviabiliza um acordo duradouro.

No interior de Israel, a dinâmica política agrava o impasse. O governo de Benjamin Netanyahu equilibra pressões internas — vindas da direita mais dura e das suas coligações — com advertências externas quanto aos riscos humanitários e diplomáticos.

A narrativa oficial de “eliminar a ameaça” do Hamas serve de justificação para operações de larga escala; o resultado é a destruição de infraestruturas civis e um êxodo interno que as agências internacionais descrevem como cataclísmico. As necessidades de reconstrução já atingem proporções que apenas a ONU e as organizações humanitárias conseguem dimensionar, enquanto as promessas de apoio revelam-se incapazes de restaurar os serviços básicos.

A ONU é taxativa: é imprescindível uma cessação duradoura das hostilidades e mecanismos verificáveis que protejam civis e assegurem a assistência. As palavras de Guterres — elogiando os avanços diplomáticos, mas exigindo cumprimento e escala da ajuda — revelam uma contradição estrutural do sistema internacional: há vontade declarada, mas faltam instrumentos de garantia e pressão efectiva sobre os actores que controlam fronteiras e rotas de abastecimento.

Que medidas urgem para que este interregno não se reduza a propaganda? Em primeiro lugar, a criação de corredores humanitários realmente seguros, supervisionados por observadores independentes e com acesso incondicional das agências.

Em segundo, um compromisso público e verificável para multiplicar as entregas diárias — para além das promessas — e assegurar que combustível e insumos médicos cheguem sem entraves.

Em terceiro, uma acção diplomática coordenada — europeia e multilateral — que vá além das declarações: sanções direccionadas, condicionamento de apoios militares e vetos operacionais devem ser considerados instrumentos legítimos de protecção de civis.

Por fim, é indispensável iniciar um processo político que enfrente as causas estruturais do conflito: a ocupação, os bloqueios e a ausência de um quadro credível para a paz. Sem isso, qualquer pausa humanitária será apenas um prelúdio para nova escalada.

Em Gaza, as pessoas não vivem — resistem. A promessa de um alívio temporário converteu-se num instrumento de propaganda útil a governos que necessitam demonstrar sensibilidade enquanto preservam intactos os alicerces da guerra. E, enquanto se negoceia cada transporte de farinha, cada litro de combustível, cada evacuação médica, a trégua continua a ser apenas uma palavra — uma miragem num deserto de cinzas.

Falar de Gaza impõe uma questão ética inescapável: trata-se de um conflito a ser observado à distância ou de uma realidade que exige acção efectiva da comunidade internacional? A resposta requer determinação política — para condenar violações do direito internacional, exigir responsabilização e orientar as políticas externas segundo a defesa da vida humana. Sem essa coragem, qualquer cessar-fogo não passará de uma encenação momentânea de esperança, enquanto a tragédia prossegue no silêncio devastador das cidades em ruínas.

O conflito no território palestiniano é hoje o espelho de um mundo onde a moral se mede pela conveniência política. Israel insiste em que luta pela sua segurança; os Estados Unidos afirmam que procuram estabilidade; a ONU pede o impossível; e a Europa observa, dividida, o colapso de mais uma promessa de paz. O resultado é uma tragédia em câmara lenta, onde o cessar-fogo nunca cessa e a paz é sempre adiada.

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