quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Uma alternativa que precisa ser humana

O século XXI atravessa um processo de reconfiguração geopolítica tão profundo quanto aquele vivido no imediato pós-Guerra Fria. Após décadas de dominação unipolar liderada pelos Estados Unidos – marcada por guerras preventivas, sanções unilaterais e chantagem financeira –, assistimos agora à ascensão de um novo polo global. Os BRICS, que começaram como uma aliança econômica entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, transformaram-se num vetor de contestação à ordem mundial hegemônica. Com sua recente ampliação e crescente influência sobre países do Sul Global, os BRICS se afirmam como alternativa concreta à arquitetura ocidental do poder. Mas a pergunta essencial permanece: essa nova ordem será mais justa ou apenas trocará os protagonistas da dominação?

De acordo com dados recentes do Geopolitical Economy Report e da EY Global, o bloco BRICS+ – já incluindo países como Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Irã e Emirados Árabes – representa hoje 44% do PIB mundial em Paridade de Poder de Compra (PPP) e abriga 56% da população global. Em contraste, o G7, que dominou o século XX com suas políticas neoliberais e intervencionistas, recuou para cerca de 30% do PIB global (PPP). A inversão de protagonismo não é apenas simbólica: ela indica uma nova centralidade produtiva e tecnológica nas mãos do Sul Global. No entanto, o fato de o BRICS superar o G7 em paridade de poder de compra não resolve, por si só, a crise de legitimidade do sistema internacional. A questão não é apenas de quem comanda, mas como comanda – e a serviço de quem.


Nesse sentido, há uma contradição evidente entre a promessa emancipatória do BRICS e as realidades concretas vividas pelos trabalhadores nos países que compõem o bloco. A China, embora celebre avanços colossais em infraestrutura, tecnologia e crescimento econômico, ainda mantém práticas laborais que atentam contra a dignidade humana. A chamada jornada 996 – das 9h às 21h, seis dias por semana – ainda é observada em diversas empresas do setor de tecnologia, apesar de sua ilegalidade formal. Essa lógica extenuante de produtividade sem limites já foi amplamente denunciada por movimentos populares e até por tribunais locais, que reconhecem o vínculo entre esse regime de trabalho e o adoecimento mental da juventude chinesa.

Na Índia, a situação é igualmente alarmante. O Global Slavery Index 2023, publicado pela organização Walk Free, revelou que 11 milhões de pessoas vivem em condições de escravidão moderna no país – a maior cifra registrada no mundo. São trabalhadores aprisionados em servidão por dívidas, exploração infantil, tráfico humano e condições degradantes de moradia e saúde. Embora existam iniciativas bem-sucedidas de resgate e proteção, como o modelo desenvolvido em Tamil Nadu com apoio da International Justice Mission, a estrutura social baseada em castas e desigualdades históricas continua a alimentar esse ciclo de opressão.

Diante desse panorama, é legítimo questionar: que tipo de nova ordem está sendo construída? Uma ordem que silencia diante da brutalidade dos regimes de trabalho? Que incorpora Estados autoritários como Arábia Saudita e Irã sem exigir contrapartidas mínimas em direitos civis, políticos e sociais? Ou uma ordem verdadeiramente democrática, multilateral, centrada na solidariedade entre os povos?

O Brasil, neste contexto, possui uma responsabilidade histórica. Sua posição estratégica, tanto regional quanto diplomática, pode influenciar os rumos do bloco. Mais do que buscar vantagens comerciais ou protagonismo simbólico, o Brasil deve tensionar o BRICS em favor dos direitos humanos, dos direitos trabalhistas, da saúde mental dos trabalhadores e da transição ecológica justa. Deve, também, recusar a seletividade moral que tantas vezes caracteriza a política internacional. Se o país critica, corretamente, o belicismo norte-americano, também deve criticar com firmeza o genocído cometido por Israel contra o povo palestino, bem como a invasão russa na Ucrânia, que viola os princípios mais elementares do direito internacional. A defesa da paz e da autodeterminação dos povos não pode se dobrar aos interesses estratégicos de aliados momentâneos.

É evidente que a emergência de um mundo multipolar, com empresas como BYD, Embraer, Huawei e as novas cadeias globais de valor em energia limpa e mobilidade sustentável, representa uma oportunidade histórica. A descentralização do poder pode, sim, favorecer uma distribuição mais justa de recursos, tecnologias e conhecimento. Mas essa descentralização deve vir acompanhada de uma nova ética: a ética da solidariedade, da cooperação e da centralidade da vida. Uma ordem que substitui Washington por Pequim, sem alterar as estruturas de exploração do trabalho, é apenas a repetição de um mesmo pesadelo com outros sotaques.

O desafio, portanto, não é apenas econômico. É civilizacional. Os BRICS não podem se tornar apenas um novo eixo de influência global. Devem se tornar uma referência de esperança. Um projeto de humanidade que supere a lógica do lucro, da guerra, da exploração e do adoecimento psíquico em massa. Um pacto mundial que priorize a justiça social, o direito ao descanso, a igualdade de gênero, o cuidado com o planeta e a construção de uma cultura internacional de paz.

O século XXI não precisa de novos impérios. Precisa de novas alianças. De um multilateralismo que se oponha tanto ao imperialismo armado quanto ao autoritarismo econômico. E de uma nova voz, que venha do Sul, mas fale por toda a humanidade. Uma voz que diga, com a autoridade moral de quem já sofreu demais: nunca mais seremos engrenagens caladas de uma máquina que nos adoece.

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